sábado, 12 de outubro de 2013

Análise do conto O jantar, de Clarice Lispector

LISPECTOR, Clarice, O Jantar, Editora Rocco, 1998

O BEM E O MAL

Laços de família é o primeiro livro de contos de Clarice Lispector, no qual oito, dos treze, retratam a condição feminina na família, narrados em 3ª pessoa. O Jantar é o único em 1ª pessoa, e tem como narrador um personagem masculino que observa o indelicado ato de comer de um homem, na outra mesa do restaurante.

O conto não revela o nome do homem a jantar. Assim, possibilita uma aproximação da história sugerindo que o homem pode ser qualquer um que a ler. É descrito não apenas a maneira como o homem se comporta durante a refeição, mas o ser enquanto humano, suas inquietações, seu modo de ser, o seu interior. Com uma linguagem simples Clarice Lispector consegue trabalhar de forma empática, a tão antiga dificuldade de compreender o outro, a vivência em sociedade, levando o leitor a também sentir os conflitos sentidos pelo narrador estabelecendo a predominância do tempo psicológico na obra, revelando os sentimentos dos personagens, não obstante se perceba a existência de um tempo cronológico.

“Desta vez, quando o tira sem pressa, as pupilas estão extremamente doces e cansadas, e antes dele enxugar-se — eu vi. Vi a lágrima. Inclino-me sobre a carne, perdido. Quando finalmente consigo encará-lo do fundo de meu rosto pálido, vejo que também ele se inclinou com os cotovelos apoiados sobre a mesa, a cabeça entre as mãos. E exatamente ele não suportava mais”. pág. 53.

De acordo com a psicologia, o ato de comer é mais que tentativa de satisfazer a necessidade biológica, comer é um ato público. Isto porque comer caracteriza-se como um dos primeiros tipos de comunicação humana de todo indivíduo, uma vez que os pais sondam o estado físico e até emocional dos bebês através desse ato, estabelecendo assim, um diálogo não-verbal com os  filhos. Acrescente a isso, traz diversos significados simbólicos sobre o relacionamento interpessoal, demonstrando muitas questões psicológicas como apelo social em confraternizações entre amigos, carência, hostilidade, medo de rejeição, e até desejo de destruir o outro.
“A comida devia ter parado pouco abaixo da garganta sob a dureza da emoção, pois quando ele pôde continuar fez um gesto terrível de esforço para engolir e passou um guardanapo pela testa. Eu não podia mais, a carne no meu prato era crua, eu é que não podia mais porém ele – ele comia”. pág. 53.

O Jantar dá ênfase a esse ato com descrições que desenham não apenas o físico de um homem que come, como também sugere uma personalidade bruta, indelicada e faminta, que não se resume somente àquele momento da refeição, mas traduz, de modo geral, os lados do homem, o ser humanizado, enquanto gente, e o grosseiro, bruto, animalizado. Desse modo, Clarice Lispector, usa o ato de comer para retratar questões internas, conflitos da relação em sociedade, transcendendo o ato de comer para sobreviver, ao ato de sobreviver às próprias crises existenciais. Em o jantar, o homem é animalizado quando mostrado como alguém desesperado para comer, de cotovelos sobre a mesa, lábios sujos, semelhante a um animal, que come sem regras de etiqueta, regido pelo instinto de devorar para saciar a fome.

“Porque agora desperto, virava subitamente a carne de um lado e de outro, examinava-a com veemência, a ponta da língua aparecendo — apalpava o bife com as costas do garfo, quase o cheirava, mexendo a boca de antemão”. pág. 52. O narrador-observador o ver com hostilidade, metaforizando um bicho a devorar a caça, guiado somente pelo instinto animal. “Então, já sem fome, o grande cavalo apoia a cabeça na mão”. pág.54.

A simbologia do ato de comer retratando o bem e o mal, o bom e ruim, percorre até mesmo o âmbito religioso. Nos textos bíblicos é possível encontrar muitos exemplos, como a história de Adão, no Jardim do Éder, nos quais a maldade e a morte do homem vieram em consequência do comer (o fruto proibido). No entanto, mais tarde, o mesmo ato assume a possibilidade de reconciliação do homem com seu criador, quando Deus oferece o único filho para a salvação da humanidade. “Porque, assim como a morte veio por um só homem, também a ressurreição veio por um homem”. 1º Corintios 15.21, ARC. E é sob a forma emblemática da comida, que com a celebração da Ceia para os cristãos, relembram a salvação ao comerem o pão e beberem o vinho. “ ...o Senhor Jesus, na noite em que foi traído, tomou o pão; e, havendo dado graças, o partiu e disse: Isto é o meu corpo que é partido por vós; fazei isto em memória de mim”. 1º Corintios 11.24, ARA.

Em outros momentos, ainda nos textos bíblicos encontram-se diversos rituais de celebração da cultura judaica, em que a comida faz referência ao bem e ao mal, com mel e fel sendo usados para transmitir esse paradoxo entre morte e vida. Ademais, determinados tipos de comida representarem mácula, impureza e remeterem ao pecado, como é o caso da carne crua. “Não comereis carne crua nem cozida na água, mas assada em fogo: inteiro com cabeça, pernas e vísceras”. Bíblia Católica, Êxodo.12.9.

No conto O Jantar o narrador observando o cardápio do homem, afirma conter carne crua, e acrescenta que isto não impede o velho de continuar comendo. Duas coisas podem ser observadas nesse momento. Primeiro, o sentimento de quem contempla a cena. Segundo a representação que a mesma possui. A carne crua causa náusea no narrador porque transmitiu para ele o mal, a insensibilidade, a ausência do sentimento humano que esperava ver no outro, e não ver.

Procuro aproveitar este momento, em que ele não possui mais o próprio rosto, para ver afinal. Mas é inútil. A grande aparência que vejo é desconhecida, majestosa, cruel e cega. O que eu quero olhar diretamente, pela força extraordinária do ancião, não existe neste instante”. pág. 54.

O homem representa a sociedade, no caso, a burguesa, como suas características descritas comprovam. Certamente ocupara-se até agora em grandes negócios... Num dedo o anel de sua força”. pág. 52. O narrador representa o olho social a analisar, comparar, criticar. Por vezes, faz questão de destacar as diferenças entre o homem e a mulher magra. Ele corpulento, velho, bruto, faminto, embora ostentasse poder. “A voz que esperava dele: voz sem réplicas possíveis pela qual eu via que jamais se poderia fazer alguma coisa por ele. Senão obedecê-lo”. pág. 53. Ela magra, elegante, sorridente, cada vez mais bela. Há dois momentos a se notar enquanto o “corpulento” come. Em um, ele come em agonia, desesperado para saciar a fome que o assalta. O que pode constituir sua personalidade autoritária, “sem réplicas”, esperando ser sempre obedecido. O prazer em suprir a necessidade biológica pode remeter à (in)satisfação da sua posição social. Em outro, já na sobremesa, com traços caídos e dementes, parece introspectivo. O termo “comedor de criança” pode remeter à morte desse lado infantil, inocente, alegre que ele tentar resgatar.

“Os traços agora caídos e dementes, ele balançava a cabeça de um lado para outro, de um lado para outro sem se conter mais, com a boca apertada, os olhos cerrados, embalando-se — o patriarca estava chorando por dentro” pág. 54.

Narrando, se auto-avaliar enquanto julga o protagonista. O vê em plena glória a mastigar de boca aberta, olha o próprio prato e desiste de cortar a carne quando o velho furta-lhe mais uma vez a atenção, demonstrando não mais suportar. Em contrapartida ele próprio não consegue comer, transfere para a comida toda a repulsa que o outro lhe causa. Pega então no copo de vinho e bebe de olhos fechados, em rumorosa ressurreição. Meus olhos ardem e a claridade é alta, persistente. Estou tomado pelo êxtase arfante da náusea.”. pág. 53.

Sua observação ganha profundidade, pois faz uma reflexão sobre si mesmo ao longo da obra, a partir de um ato aparentemente simples como o de comer. Seu julgamento imprime um sentimento de superioridade. Ele demonstra se achar melhor que o homem.“Quando me traíram ou assassinaram, quando alguém foi embora para sempre, ou perdi o que de melhor me restava, ou quando soube que vou morrer — eu não como”. pág. 55. Encanto o velho comia sem perceber um mundo à sua volta, o outro tinha a sensibilidade de perder o apetite por ver a indelicadeza de um velho ao fazer a refeição. “Mas eu sou um homem ainda... Empurro o prato, rejeito a carne e seu sangue.” pág. 55. 

Desse modo mostra que ainda se sente humano, pois continua tendo sentimentos mesmo enquanto come, diferente do outro que ao terminar “Sua cara se esvazia de expressão”pág. 54. Dessa maneira, estabelecemos comunicação com os outros, uma vez que até comendo denunciamos muito de nós, nosso interior, qualidades e defeitos.

“Batia um lábio no outro, estalava a língua com desgosto como se o que era bom fosse intolerável... Com a mão pesada e cabeluda, onde na palma as linhas eram cravadas com tal fatalidade, faz um gesto de pensamento. Diz com a mímica o mais que pode, e eu, eu não compreendo. E como se não suportasse mais — larga o garfo no prato”. pág. 54.

Há quem diga que “somos o que vestimos” pode-se parafrasear afirmando que “somos o que comemos” pois nesse momento, imprimimos nosso lado mais obscuro, a bichificação do homem , revelando o interior, no qual, abriga a maldade humana tão crua quanto a crua carne servida em O Jantar. “A grande aparência que vejo é desconhecida, majestosa, cruel e cega”. pág. 55.  Dessa forma, a comida é metaforicamente utilizada para destacar o aspecto interior do ser humano.

Evanilde Miranda

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