sábado, 12 de outubro de 2013

Análise de "Toda nudez será castigada", de Nelson Rodrigues

SACRIFÍCIO, LOUCURA E TRAGÉDIA

Toda nudez será castigada, de Nelson Rodrigues, inicia em média res, com flash backs nos quais aos poucos a história é compreendida, assim como o sentido do título. A nudez no seu amplo sentido, com a presença do desejo dando lugar à tragédia, traz à tona a reflexão sobre a possibilidade de o desejo se irmanar com a morte. Um dos elementos da tragédia trabalhado pelo autor é a Moira, o destino. Nelson apresenta a personagem conhecedora de seu destino caminhando conformadamente para ele, diferente das histórias trágicas da mitologia grega.

Ao contrário de Aquiles, que ao saber que trairia o seu pai com sua própria mãe, resolve fugir para evitar o pior, Geni espera complacente pelo cumprimento do seu funesto destino. Repetidas vezes afirma, primeiro para Patrício “O melhor você não sabe. Tenho uma cisma que vou morrer de câncer no seio” pág. 82, depois para Herculano “Eu cismo desde garotinha, que também vou morrer de câncer no seio. É um palpite, sei lá” pág. 86.

É possível encontrar muitos exemplos como o de Geni, que esperaram de modo resignado, um futuro determinado, inclusive nos textos bíblicos. No livro de Mateus, quando um discípulo tenta impedir que Jesus seja preso, o próprio Cristo, ao repreendê-lo, declara “Como, pois, se cumpriria as Escrituras...?” Mateus 26.54. Mais adiante, Mateus confirma as palavras do seu mestre “Mas tudo isso aconteceu para que se cumpram as Escrituras dos profetas...” Mateus 4.58. José do Egito também entende que seu destino já estava traçado exatamente como aconteceu. “Assim, não foste vós que me enviaste para cá, senão Deus, que me tem posto por pai de Faraó...” Gênesis 45.8.

Enquanto nas tragédias gregas, aquele que conhece o seu futuro sente-se perturbado e luta para que este não aconteça, Geni, aceita obsessivamente as palavras da mãe, como uma praga inevitável: “Quando eu tinha 12 anos...minha mãe me mandou comprar não sei o quê...Eu demorei. E quando cheguei, minha mãe gritou: - Tu vai morrer de câncer no seio!” pág. 88. Geni acredita que isso seja a razão de ter caído na zona, que as palavras da mãe influenciaram em toda sua vida sem infância. Desse modo, a Hybris não está presente nas ações da protagonista. Porém, esta, pode ser percebida em Herculano, que afirma que prostituta não é mulher, e é justamente por uma que se apaixona e ignorando a opinião social desfruta de seu amor.
“Se alguém te disse que eu ia casar com essa mulher, é mentira, calúnia! Jamais me passou pela cabeça essa ideia. Nem é minha amante...uma prostituta não é amante, é uma mulher que todos usam -- mas pagando!” pág.103.

Depois bastou Serginho pedir para que o pai casasse, para que este assumisse o que sentia por Geni. “...O senhor não sabe o caráter de Geni! E a bondade e delicadeza! Até o Patrício mudou tanto!”. pág.107.
 Percebemos a hybris também em Serginho, que evita o sexo por considerá-o impuro e incorreto, no entanto, possui tendências homossexuais. E mesmo conhecendo o sexo de forma agressiva, por um estupro, resolve desfrutá-lo com sua própria madrasta e ainda se sente traído pelo pai. “Sabe que eu fico besta contigo? Parece mentira, mas você me trai... Você não me trai com meu pai?” pág.108. Apresenta, desse modo, oscilação entre o conservadorismo das tias e o liberalismo do tio Patrício.

O personagem Patrício, semelhante a Iago, de Otelo, é o mentor de todos os acontecimentos, causador de todas as intrigas, pois faz a todos de fantoches, submissos à sua vontade. Representa o interesse individual, egoísta em detrimento do coletivo. “Então te levo ao Serginho. Ele só faz o que eu quero. O garoto está maluco. Mas é uma loucura que aderna para um lado ou para outro, segundo a minha vontade.” pág. 104. Assim, assume o papel de condutor dos personagens ao caminho do cumprimento de seus destinos, determinado por ele próprio, com o poder emblemático dos deuses.

A Catarse também é percebida em vários momentos da peça. Quando Geni resolve viver para Herculano m troca de comida, depois que Serginho é preso e estuprado na prisão.
 “(chorando) – Vou ser tua criada, criada do teu filho! Vou lavar chão, mas não saio. Herculano! Não saio daqui enquanto, até o fim da minha vida... - não quero nada senão um prato de comida e um canto pra dormir”. pág.102. Outro momento se constitui quando Geni tira a própria vida, depois de comunicar ao esposo, por meio de uma gravação. "Herculano, quem te fala é uma morta. Eu morri. Me matei...Você pensa que sabe muito. Sabe tão pouco!". pág.80. 

Nelson Rodrigues, constrói Toda Nudez os revisitando os elementos da tragédia, todavia, com um outro olhar, com um olhar mais relista, escancarando os conflitos sociais de preconceitos, adultério, tendências ao homossexualismo,  incesto, desejo de homicídio, camuflados num conservadorismo hipócrita. As tias de Herculano, antes acusadoras de Geni, depois de verem o sobrinho contrair matrimônio com a prostituta, casando, seguindo as regras da sociedade, passam a defender com a finco, a mais nova integrante da família e negam o passado de Geni.

“Tia nº 1(ameaçadora) – O que é que você ia dizer de Geni?
Tia nº 3 -  Geni agora é da família.
Tia nº 2 – A gente olha para Geni e não diz que ela já foi da zona.
Tia nº 1 – Você tá louca?...Geni nunca foi da zona. Honestíssima. Você é que pôs isso na cabeça, porque está fraca da memória. Arteriosclerose!”. pág. 108.

O autor roupe com modo fixo e determinado das tragédias gregas, mostrando em sua obra, que o destino, pode ser mudado a partir da atitude dos personagens, uma vez que Geni, decide seu fim cometendo suicídio, embora tivesse a dolorosa obsessão de morrer com uma ferida no seio. 

Assim, desconstrói a ideia de que os deuses é quem decidem o destino, mostrando que na verdade, cabe a cada um, decidir seu fim, construir sua própria história. Em toda nudez será castigada, encontramos as contradições vividas por personagem Herculano, que tentam sacrificar a felicidade por sentirem sucumbidos pelo preconceito de uma sociedade igualmente falha. Também enxergamos Geni, beirando à loucura, numa obsessão por um funesto, de uma morte de câncer no seio, rompida por uma tragédia: seu suicídio.

Evanilde Miranda

Um comentário:

  1. Primorosa sua análise sobre a obra. Que bom que há pessoas assim, profundamente interessadas e capazes de mergulhar em busca de sentidos, guiadas pelo instinto e pelas ferramentas que adquirem devido a sua paixão por respostas.

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