quarta-feira, 23 de janeiro de 2013


AUSÊNCIA DO EXERCÍCIO DE CIDADANIA: UMA CONSEQUÊNCIA DA FALTA DE IDENTIDADE HUMANA EM “CIDADÃO DE PAPELÃO”, EM O TEATRO MÁGICO

MIRANDA, Evanilde (CESI/UEMA)                                                                                                    

RESUMO: O objetivo da análise do clipe da música Cidadão de papelão, de O Teatro Mágico é refletir sobre a identidade humana. A ausência de proteção, garantida pela Constituição, unidas às dificuldades e preconceitos enfrentados é o que coloca o sujeito à margem da sociedade. O clipe retrata numa linguagem irônica, a falta de identidade humana, mesclando trocadilhos, jogos de palavras e metáforas. O cidadão de papelão é um homem que se torna produto do meio, quando não consegue entender o que vivencia, apenas se habitua, não reage contra as circunstâncias, atua como uma criatura sem convicção, uma vez que não possui o que prova sua existência, um papel. O clipe é a caricatura da criação do cidadão de papelão desconstruindo a ideia de exercício de cidadania. Esta proposição se baseia nos estudos de Stuart Hall, sobretudo no que se refere à identidade do homem contemporâneo e pós-moderno.
Palavras-chave: Teatro Mágico. Videoclipe. Identidade.

ABSTRACT: The goal of the analysis of the music video Citizen of cardboard, The Magic Theatre is a reflection on human identity. The absence of protection, guaranteed by the Constitution, together with the difficulties and prejudices faced is what puts the subject on the margins of society. The clip portrays an ironic language, lack of human identity, mixing puns, wordplay and metaphors. Cardboard Citizens is a man who becomes a product of environment, when you can not understand the experience that only gets used, it reacts against circumstances, acts as a creature without conviction, since they do not have the proof that his existence a paper. The clip is a cartoon creation of citizen cardboard deconstructing the idea of exercising citizenship. This proposition is based on studies of Stuart Hall, especially with regard to the identity of the contemporary and postmodern.
Keywords: Magic Theatre. Video clip. Identity.







INTRODUÇÃO

A partir de várias teorias citadas nesse trabalho, sob a ótica, à princípio, de Stuart Hall, expondo os três tipos de identidade humana, almejou-se constatar que o sujeito abordado no vídeo clipe não possui uma identidade humana. O presente artigo buscou nas teorias, explicações para a ausência de identidade do indivíduo retratado na música objeto de análise, “Cidadão de Papelão”, de O Teatro Mágico.
Inicialmente uma breve informação a respeito do grupo O Teatro Mágico e sua composição “Cidadão de Papelão”, imprimindo seu estilo a partir da presença de elementos literários, que, unidos às imagens do vídeo, contribuem para a análise da música.
Em seguida, as linhas de pesquisa embasadas em Silva, Berger, Bauman, Berman, Cícero, Proudhon e Demo, e suas contribuições sobre a construção\alteração da identidade humana, as consequências de sua não existência e sua influência na prática do exercício de cidadania. 
Na sequência da pesquisa, a partir dos estudos de Berger, foram abordadas as questões da institucionalização como definidora do que é ou não identidade, e a construção da identidade humana, que se estabelece somente pela internalização da construção da realidade. Silva ressalta a importância da autoidentidade e da necessidade de firmar a identidade no meio social para que o indivíduo não fique à margem da sociedade. O resultado dessa não afirmação é enfatizado por Demo, ao tecer críticas às políticas sociais que veem nos menos favorecidos, um alvo para práticas que não potencializam a dignidade humana.
E por último, as considerações finais da pesquisa apontando os problemas e possíveis soluções mediadoras de modo a promover a formação da consciência crítica, a autonomia política em detrimento da marginalização humana.




AUSÊNCIA DO EXERCÍCIO DE CIDADANIA: UMA CONSEQUÊNCIA DA FALTA DE IDENTIDADE HUMANA EM “CIDADÃO DE PAPELÃO”, EM O TEATRO MÁGICO
             
O Teatro Mágico é um grupo musical brasileiro, criado em 2003 por Fernando Anitelli, músico, compositor e ator. É um grupo independente, que não tem apoio de gravadoras ou campanhas midiáticas. Suas composições são marcadas pela criatividade na escolha de palavras que possibilitam a polissignificação, imprimindo um aspecto literário nas canções com críticas sutis e denuncias sociais. O grupo possui três discos: A entrada para Raros, Segundo Ato e Sociedade do Espetáculo. O último traz a música Cidadão de Papelão, objeto desse trabalho.
A falta de identidade humana e o não-exercício de cidadania
Na expressão “O cara que catava papelão pediu um pingado quente”, o termo “cara” poderia sugerir, a princípio, qualidades como esperto, gênio ou algo que o fizesse se destacar. No entanto, assume um significado contrário, pois o artigo “o” o generaliza, restringindo-o apenas no sentido de que é aquele que catava papelão.
O “pingado quente” é o tipo de café mais simples e mais barato, que consiste em uma porção de leite e um pingo de café. Isto sugere uma metaforização a esse “cara”. Aduz ao seu próprio valor ou o estado em que se encontra, com pouco dinheiro, pois o verbo “pediu”, embora seja usado para se referir ao ato de comprar, aqui soa, de fato, como um pedido e não uma compra. Isto porque mais adiante acrescenta-se “em maus lençóis, remetendo à ideia de que este se encontra numa situação complicada, uma vez que é isso que a expressão “em maus lençóis” quer dizer. Essa situação difícil, pode ser entendida como dificuldade financeira, confirmada quando o “cara” pede o tipo mais barato de café.
Ademais, as informações seguintes “nem voz, nem terno” reafirmam a ideia de ausência de recursos financeiros, pois além de ser uma pessoa sem voz, sem opinião, que não é ouvida, logo não interage de forma positiva com os demais, é sem terno. A palavra terno assume duplo sentido, tanto o de que ele não é um sujeito afetuoso, quanto o de substantivo, como um indivíduo sem status social, sem algo para ostentar, ou simplesmente desfrutar, logo, sem motivos para esbanjar afetuosidade, uma vez que está à margem de toda a rua.
De acordo com a concepção de Proudhon (2007:65), “todo aquele que não tiver renda nem salário, não tem o direito de exigir coisa alguma dos outros”. O dinheiro, nessa perspectiva, influi na interação humana e nos próprios direitos civis. Em consequência, o “cara” não é um ser social, visto que não dialoga com a sociedade, nem desfruta de seus direitos, pois para Cícero
os degraus da socialidade humana são múltiplos. [...] O vínculo mais restrito consiste na pertença à mesma cidade. Aí muitas coisas são comuns entre os cidadãos; as praças, os templos, as ruas, as leis, os direitos, os tribunais, o voto, os costumes, a amizade, o comércio e a relação de interesses compartilhados. (CÍCERO, 2008. p.78).
Esse cara, portanto, não é um cidadão, visto que não possui direitos, não comunga das mesmas coisas e nem compartilha interesses. Não é o que Stuart Hall chamaria de sujeito com identidade, cujo “O sujeito do Iluminismo estava baseado numa concepção da pessoa humana como um indivíduo totalmente centrado [...] O centro essencial do eu era a identidade de uma pessoa” (HALL, 2006, p.10,11). Portanto, essa indivíduo centrado não é percebido no “cara” em questão, pois na verdade o que é explícito é sua impossibilidade de ostentar algo diante da sociedade.
“À margem de toda rua, sem identificação”,
Rua é um ambiente externo que remete ao social, às pessoas e à interação em sociedade, porém, ele está à margem, distante, separado, “sem identificação”, sem documentos, isto é, invisível. Como “[...]a identidade é formada na “interação” entre o eu e a sociedade” (HALL, 2006, p.11), entende-se que esse ser em questão, não possui, de fato, uma identidade humana, pois a interação com o outro não existe.
A palavra identificação remete tanto aos documentos pessoais, quanto a características que especificam quem alguém é. Além de ele não possuir uma identidade diante da sociedade, não possui os documentos pessoais. O que enfatiza ainda mais a ausência do eu, da força de alguém de personalidade. Não é um sujeito sociólogo em diálogo com os mundos culturais, tendo a interação como a que “estabiliza tanto os sujeitos quanto os mundos culturais” (HALL, 2006, p.12), é apenas um “cara” indefinido, sem nome, sem marca social.
A questão da falta de documentos pessoais configura um grave obstáculo para o exercício de cidadania, tendo em vista que sem este, não é possível identificar quem é alguém. O documento vale mais que a palavra, e caracteriza um requisito para o usufruto dos direitos fundamentais do cidadão, inclusive o de ser considerado cidadão. É possível não possuir uma identidade humana e ter documentação pessoal, todavia, não ter documentos impossibilita uma identidade pessoal, pois sem estes, o sujeito é apátrido, sem personalidade jurídica e sem dignidade humana, pois não existe socialmente. 
A construção social da realidade e da identidade humana
A expressão “Um homem de pedra, de pó, de pé no chão” traz vocábulos fortes que enfatizam informações sobre ele, apontado-o como um homem rústico. A pedra, aduz à dicotomia do caráter sujeição/subjetividade, retratada por Foucault, importante no processo de formação do sujeito. A pedra como obstáculo, remete à ausência da internalização da construção da realidade, caracterizando o não ser o que se espera, não seguir paradigmas, a ser o que atrapalha, logo, a razão para estar à margem.
Em consequência disso, ele é apenas algo e segundo (Souza apud Hirst, 1979, p.65)“ esse algo que ainda não é sujeito deve já ter as faculdades necessárias para realizar o reconhecimento que o constituirá como sujeito” (SOUZA, 2007.p.15). A identidade é, portanto,  origem de uma construção social, visto que é preciso sujeição ao que é imposto, para que o processo de identificação ocorra. Em razão de ser por meio das práticas (regras/normas) que os sujeitos são levados a se observarem, se reconhecendo ao estabelecer “de si para consigo uma certa relação que lhes permite descobrir , no desejo, a verdade do seu ser” (SOUZA,  2007, p.124) e é desse modo que a subjetividade aparece, possibilitando a formação da identidade humana.
O “pó” como o que incomoda mesmo tendo existência frágil, podendo ser eliminado a qualquer momento, se mostra como a fotografia desse ser que apenas sobrevive. De “pé no chão” revela gradativamente a situação desse homem, descalço, desprotegido, sem ninguém por ele. Remete também à ausência da proteção garantida pela Constituição, aos direitos que, por lei, todos têm. Entretanto, para o seu usufruto é necessário provar que é alguém, é preciso existir socialmente. Esse homem não tem identificação. Não tem voz, não tem ninguém. Não tem crédito, não é ninguém, nem interage de com o outro.
Quando se diz “Sem vocação, sem convicção” entende-se que esse homem não tem profissão, um meio fixo, estável para garantir seu sustento. Nem convicção, nem sonhos ou perspectivas de vida. Na expressão anterior, “de pé na cova”, seu destino já está determinado. Semelhante ao pó, que é eliminado porque incomoda, a sua morte é deliberada, pois depois de ser invisível, seu último estado é a cova, o fim, a inexistência de fato. Para Berger e Luckmann, a “[..] identidade é um fenômeno que deriva da dialética entre um indivíduo e a sociedade” (BERGER & LUCKMANN, 2007, p.230) e como esse homem está à margem dela, a morte física alude à situação de morte (não-existência) da identidade humana.
À margem de toda candura, remete ao estar distante da delicadeza, da polidez, da “civilização”, da modelagem que a sociedade impõe. Ingênuo, não conhece seus direitos, nem a possibilidade de lutar por eles. É alguém, sem educação sistematizada, sem ostentação, sem convicção, desprovido de tudo o que poderia atrair a atenção dos demais. Como “o indivíduo não nasce membro da sociedade” (BERGER & LUCKMANN,2007, p.173), é preciso induzi-lo à sociabilidade a fim de apreender a identidade subjetiva. O “homem de pedra” necessita passar pela socialização para tomar conhecimento de sua realidade subjetiva e deixar de ser um sujeito sem identidade humana.
O “papo”, conforme o dicionário Aurélio, é o local onde se guarda alimentos antes de serem eliminados. Emblematicamente, o cara que catava papelão é o que colhe aquilo que teria o lixo como destino final. Num trocadilho ao estado em que se encontra, catador é aquele que cata dor, em virtude de ele manter-se, dia-após-dia, numa situação difícil.
“Um sopapo” lembra bofetada, tabefe, atitude agressiva. Sugere a atitude que o sujeito sem identificação recebe de outros que se julgam superiores a ele, pois no vídeo, um homem calçando sapatos de marca chuta o papelão, e o papelão faz alusão a esse homem sem aparente importância. Está implícito uma forte crítica ao homem “polido”, “educado”, que age de modo contrário ao que se espera de alguém civilizado. Nesse aspecto, é dual o sentido de cidadão de “papelão”, sendo tanto aquele que está à margem, esquecido, quanto o socialmente aceito como cidadão. Enquanto o primeiro é um “papelão” no sentido de frágil e abandonado por não transmitir tanta importância, o segundo, está como acepção à vergonha, pela falta de empatia e respeito aos menos favorecidos.
A tríplice da miséria humana: Pobreza, trabalho e concorrência
“Cria a dor, cria e atura”, se levada em consideração apenas a sonoridade, entende-se criador, criatura, remetendo à criação, à figura divina do Criador como Pai que protege a criatura humana. Porém, a letra mostra mais do que dois substantivos, mostra ações (cria e atura) que constroem um paradoxo sobre a situação. Uma dor que é criada pela sociedade (que ostenta) e que a cria (criatura-produto desse meio) atura tal circunstância.
No vídeo, paralela à imagem de um cara solitário, há um homem diferente dele. “Roupa cara” é o enunciado da camisa desse homem que é ovacionado por outros que o rodeia. Na sequência, há um mendigo de mão estendida, enquanto as pessoas passam indiferentes. Assim, é perceptível a ideia de desigualdade social e a dependência da relação de dominação, visto que a sociedade também deve aturá-la para que haja a perpetuação da dicotomia dominador/dominado.
Nessa perspectiva, as “roupas passam a ser o emblema do velho e ilusório estilo de vida(BERMAN, 2007, p.131), em que o poder que o capitalismo possibilita, exibe o status como determinante para a importância e aceitação social do indivíduo. A excessiva busca pelo bem-estar e aceitação social, funcionam como modificadores das culturas e, inevitavelmente, implica nas concepções e relações humanas, desarticulando identidades e também possibilitando outras novas.
 “O cara que catava papelão pediu um pingado quente, em maus lençóis, à sós”. A expressão é repetida, enfatizando seu estado de abandono: sem ninguém que o defenda. Em “a sós” é reafirmada a ausência de mais um tipo de sujeito, o sujeito sociólogo, segundo Hall (2006), produzido por meio de uma modelagem a partir do outro. O que implica dizer que o homem é um produto social, sendo impossível que o indivíduo solitariamente se desenvolva como homem.
Para Hall (2006) a interação social é fundamental para a construção da identidade humana do sujeito sociólogo, que não é autossuficiente e por isso necessita dessa troca de valores, símbolos e crenças. Berger e Luckmann, afirmam que “os homens em conjunto produzem um ambiente humano, com a totalidade de suas formações socio-culturais e psicológica” (BERGER & LUCKMANN, 2007, p.75).
O catador de papelão, entretanto, não possui uma identidade humana. Não é apresentada nenhuma característica que o enquadre numa categoria de identidade. Não se sabe se é negro ou branco. Não é trabalhador, nem estudante. Não aparece seu nome nem termos como “alguém”, “pessoa”. É apenas o “cara”, o “catador”. E finalmente, quando aparece o termo “homem” não é colocando-o na categoria de identidade de gênero percebendo o masculino como um arquétipo de pai de família, ou provedor, parece apenas informar que esse ser não é uma mulher. Assim, entende-se que ele é apresentado não como pessoa, pois para Berger e Luckmann, “ao dizer “pessoas”, supomos que os [...] indivíduos tenham personalidades formadas, coisa que evidentemente só poderia ter acontecido em um processo social” (BERGER & LUCKMANN, 2007, p.81). Porém, como um “ser humano solitário é um ser no nível animal”, uma vez que a humanização tem sentido sócio-cultural, ele não é um ser social, pois não passou por esse processo de internalização objetiva das instituições sociais.
O temo “sem farda” reafirma que ele não possui profissão, pois a farda é algo comum a estudantes e trabalhadores. Exclui, portanto, a possibilidade de esse catador ser o profissional gari. Ele é colocado como inferior ao próprio gari, que apesar de também não ser admirado pelo serviço que presta, tem um meio de garantir seu sustento e é lembrado por sua farda. O catador, na verdade, não se enquadra na categoria trabalhador, não obstante desempenhe uma atividade, ele é apenas um ser que cata para sobreviver.
Assim sendo, há uma desconstrução da ideia de trabalho como sendo o que dignifica o homem, pois na realidade não é qualquer trabalho que o dignifica, mas aquele que traz reconhecimento, status e ostentação. O trabalho, nesse aspecto, é sentido literalmente como castigo em consequência do pecado edênico, um sacrifício para se sobreviver, uma luta constante contra a miséria.
Essa visão negativa do trabalho é apreendida nas ideias do economista Thomas Robert Malthus, ainda em meados do século XVII:

Um homem que nasce num mundo já ocupado, se sua família não possui meios de alimentá-lo ou se a sociedade não tem necessidade de seu trabalho, esse homem, repito, não tem o menor direito de reclamar uma porção qualquer de alimento: está em demasia na terra. No grande banquete da natureza, não há lugar para ele. A natureza lhe ordena que se vá e ela mesma não tardará a colocar essa ordem em execução (PROUDHON, 2007, p.65)
Por conseguinte, o trabalho é mais que uma necessidade, é uma institucionalização, um requisito para o valorização do homem e para o direito de reivindicar alguma coisa. Conforme Bauman (2008), a infelicidade do homem, portanto, é culpa somente dele. E assim se estabelece a concorrência, uns buscando desenfreadamente a riqueza, enquanto outros, concomitante afundam na mais profunda miséria. A concorrência de status assume tal importância porque possibilita a aceitação e reconhecimento por parte da sociedade.
Estamos diante de uma sociedade que não quer mais ser pobre, que zomba de tudo aquilo que outrora lhe foi caro e sagrado, a liberdade, a religião e a glória, senão tiver riqueza; que para obtê-la, suporta todas as afrontas, se torna cúmplice de todas as fraquezas: e essa sede ardente de prazer, essa vontade irresistível de chegar ao luxo, sintoma de um novo período da civilização, é o mandamento supremo, em virtude do qual devemos trabalhar para a expulsão da miséria (PROUDHON, 2007, p.41).
Outrora, a máquina fora tanto o emblema de dominação da natureza, quanto da extensão de escravidão humana pelo trabalho. Agora a máquina é o próprio homem, submetendo-se ora à mais-valia, ora ao mínimo para a subsistência. Em oposição à sociedade que ostenta porque pode ostentar, existem aqueles que lutam para pelo menos parecer que ostentam. Mas há também um terceiro tipo: aqueles que não têm nada a ostentar, nem mesmo o sentir-se humano. O vídeo mostra “o cara”, acordando, juntando a cabeça ao corpo e seguindo, como que mecanicamente para mais um dia de labuta. O estar separado da cabeça sugere que ele não é dotado das capacidades de consciência, de razão e de ação. Não é autossuficiente, não possui convicções, nem sonhos. Assim não é um sujeito do Iluminismo.
A ausência do exercício de cidadania é uma consequência de falta de identidade humana
Na expressão “Sem papel, sem assinatura, se reciclando vai” há a ratificação da ideia de que o catador não possui uma educação sistematizada, não sabe ler, assinar, nem tem o papel. O “papel” pode ser entendido como os documentos que provam quem ele é. Também como a identidade humana, o ser alguém na vida, ter um papel social. De acordo com a Constituição todos são iguais e merecedores dos mesmos direitos, entretanto, para o seu usufruto, não basta existir, é necessário que o indivíduo prove quem ele é. Sem documentação a pessoa encontra-se lesada em seus direitos fundamentais ao nome, nacionalidade, personalidade jurídica e dignidade humana.  E desse modo, está impossibilitada de por em prática o exercício de cidadania e ter uma função social.
Para que o indivíduo adquira identidade é necessário que internalize as instituições para se tornar membro da sociedade e então, praticar o exercício de cidadania. Berger e Luckmann asseveram que ninguém nasce membro da sociedade, “somente depois de ter realizado este grau de interiorização é que o indivíduo se torna membro da sociedade” (BERGER & LUCKMANN, 2007, p.175). Em decorrência disso, surge a necessidade da afirmação da identidade, estabelecendo uma conexão com relação de poder entre identidade e diferença. A relação de domínio é caracterizada pelo poder de definir o que é ou não identidade, tendo em vista que é a diferença que possibilita a existência da identidade.
Hall declara que as identidades “emergem no interior do jogo de modalidades específicas de poder e são, assim, mais o produto da marcação da diferença e da exclusão” (SILVA, 2007, p.109). Portanto, o catador, não é membro social, visto que não possui as experiências que o definiriam como sendo ser social. O fato de ser diferente da sociedade da qual está à margem, insinua o poder que ela tem de defini-lo como um ser sem identidade por ele se desviar das normas que o tornariam cidadão. Consequentemente, não há identidade sem o constrangimento das regras e a atenção escrupulosa da regulamentação das normas.
 As marcas da exclusão social são percebidas na ausência de nome, trabalho, voz, convicção e interação social, como empecilho para o processo de humanização e poder tornar-se um cidadão. Ademais, “sem assinatura”, denuncia o grave problema social, a falta de estudos, que gera outros tantos problemas, pois a falta de instrução formal, torna cegos aqueles que não a possuem, os tornando invisíveis para a sociedade.

[...]organizar o ensino é dar a cada cidadão a promessa de um emprego liberal e de um salário confortável; esses dois termos estão tão intimamente ligados como a circulação arterial e a venosa. Mas a teoria de Dunoyer implica também que o progresso é verdadeiro apenas para certa elite da humanidade e que para os nove décimos do gênero humano a barbárie é a condição perpétua (PROUDHON, 2007, p.137).

A realidade da educação como privilégio apenas para alguns faz com que muitos não sintam nem a necessidade de possuí-la. Essa falta de expectativas sobre a educação é reflexo da situação de miséria humana. Quanto mais difícil é a aquisição do saber, mais lógico se torna a ausência do desejo de conquistá-lo.

Os mais miseráveis selvagens e os menos esclarecidos dos homens são precisamente aqueles aos quais é mais difícil dar necessidades, aqueles a quem se inspira com mais dificuldade o desejo de sair de seu estado (PROUDHON, 2007.p. 142).

Isto evidencia que o homem precisa saber o que é bem-estar para sentir a necessidade de possuí-lo. O cidadão de papelão é ingênuo, não conhece seus direitos, não sabe que existe a possibilidade de mudar sua realidade, por isso não tem esperança nem aspirações, apenas vai deixando a vida o levar. Assim, permanece “à margem de toda candura”.
Se valendo do estilo de O Teatro Mágico, que em suas composições, brinca com a arbitrariedade das palavras, pode-se perceber a candura como “alvo” em dois sentidos, como “branco” e como “mira\objetivo”. Distante da “civilização”, daquilo que a sociedade institucionaliza, sem estudos, profissão e desprovido do que poderia atrair a atenção dos demais, ele é apenas um cara, um sujeito apátrido, sem personalidade jurídica. Distante dessa “brancura”, dessa nitidez, torna-se a sujeira da sociedade, a parte feia que não deve está às claras, mas escondido, invisível. Consequentemente, não é o objetivo, a preocupação, o alvo de interesse dessa sociedade, sendo portanto, segregado dela e por ela.
O verso “Homem de pedra, de pó, de pé no chão”  traz vocábulos fortes que enfatizam informações sobre ele, apontado-o como frágil e ingênuo. A pedra, aduz ao não ser modelado pela sociedade. O chão indica uma desigualdade social, o estar à baixo, ser inferior. O “pó”, como o que incomoda, é a alegoria a esse homem que tem como certeza apenas a morte, pois o “chão”, lembra o termo “de pé na cova”, anunciada na primeira parte da música.
Como disse Proudhon (2007: 65) “A natureza lhe ordena que se vá e ela mesma não tardará a colocar essa ordem em execução”. Sucessivamente a situação do homem é apresentada deixando implícito seu último estado, como a eliminação de fato. Destarte, a ausência da identidade humana alude à própria morte física.
Em Não habita, se habitua”, o verbo habitar indica certa estabilidade, pois é sinônimo de morar, residir, ter um lugar. Mas essa estabilidade é vedada a esse homem, uma vez que ele não a possui, vai habituando-se apenas, sobrevivendo ou insistindo em existir. O reciclar, todavia, pode sugerir a possibilidade de ele adquirir identidade e dignidade humana se se permitir passar por um processo de mudança.
No clipe, há homens trajados de roupa social, de maleta na mão, lembrando múmias, sugerindo uma produção em série de homens que fazem parte da sociedade cujo “cara” está à margem.  Em outra imagem, dirigindo um carro, vê-se uma figura de penas na cabeça, lembrando o índio das tribos. As imagens lançam de modo sutil, críticas às concepções que a sociedade cria quando impõe paradigmas para que as pessoas sejam aceitas no meio social. A visão estereotipada do índio como um ser “ignorante e sem educação” é substituída por outra, de um índio “civilizado”, depois de passar por uma modelagem social. Assim, ele apreendeu a cultura do branco, e não deixou de lado sua identidade cultural, mas a ampliou.
O indígena, nesse aspecto, diferente do cidadão de papelão, é um sujeito sociólogo, pois a identidade, nessa concepção sociológica, preenche o espaço entre o "interior" e o "exterior"— entre o mundo pessoal e o mundo público” (HALL, 2006, p.11). Somente por meio da conscientização é que as pessoas conseguem sair de um estado de degradação social e interagir socialmente de forma satisfatória. Nesse sentido, não só o relacionamento interpessoal, como também o intrapessoal, são fundamentais para o processo de transformação de mente e busca de identidade e dignidade humana.
“É este conhecimento apreendido no curso da socialização e que serve de mediação da interiorização pela consciência individual das estruturas objetivas do mundo social” (BERGER & LUCKMANN, 2007, p.94). É necessário, portanto, que o indivíduo conheça o universo simbólico e não esteja apenas inserido nele, pois sua capacidade de atribuições de significações excede o domínio de vida social.
Efeitos paliativos: perpetuação da falta de dignidade humana
É relevante reiterar que embora o indivíduo seja produto do meio, também pode transformar o meio em que vive. Todavia, isso acontece somente quando adquire conhecimento sobre sua real situação e muda sua mentalidade.

Psicanaliticamente, nós continuamos buscando a "identidade" e construindo biografias que tecem as diferentes partes de nossos eus divididos numa unidade porque procuramos recapturar esse prazer fantasiado da plenitude (HALL, 2006, p.39).

Não obstante muitas vezes as pessoas encontrem oportunidades de mudar, é impedido por forças maiores que o sufocam e não dão estrutura para que a mudança de fato ocorra. Mas a partir da ciência de seu estado, uma mudança primeiro interior ocorrerá e posteriormente será refletida na sociedade. Entretanto, Bauman não vê essa mudança de forma positiva, pois para ele:
[...] a identidade é uma pena perpétua de trabalhos forçados.[...] Uma vez posto em movimento ainda na tenra infância, a composição e o desmantelamento da identidade se torna uma atividade autopropulsora, e autoestimulante (BAUMAN, 2008, p.142).

Enquanto Hall considera a identidade uma celebração móvel, Bauman (2008) a percebida de forma negativa, por ser inacabada e implicar o constantemente iniciar do zero. Isto porque a sociedade passar a estimular essa renovação do indivíduo, sob o rótulo da busca da auto identificação.


Em oposição ao pensamento de Bauman, Hall tece suas ideias sobre a identidade afirmando que ela se torna uma "celebração móvel" “formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam” (HALL, 2006, p.13). Uma vez que a identidade não é algo fixo, muda de acordo com a forma que o sujeito reage ao estado em que se encontra, podendo assumir, não mais uma, mas várias identidades diferentes em diferentes circunstâncias. Isto suscita a necessidade da autoidentidade, que está em conexão com a dúplice incluir/excluir, “se a identidade consegue se firmar é apenas por meio da repressão daquilo que ameaça” (BERGER & LUCKMANN, 2007, p.110).

O dia 3 de junho de 2012 foi o fim da vida de catador para 1,7 pessoas que se despediram do aterro de Gramacho, no Rio de Janeiro. A indenização de R$ 14.000,00 que receberam deveria ser o ponto de partida para que mudassem suas histórias e criassem expectativas de vida, porém a quantia pagou o teto e não garantiu o sustento de muitas famílias sem profissão. Nesse caso o dinheiro não foi a solução. Uma mentalidade diferente, educação sistematizada e qualificação profissional surtiriam mais efeito do que recurso em espécie, embora o secretário municipal de Conservação do RJ, Carlos Roberto Osório, tenha afirmado: "O aterro fecha com os catadores recebendo a justa compensação”.
A assistência social traz auxílios que imprimem a desigualdade social, perpetuando a situação de subordinação dos menos favorecidos, assim “predominando de modo tendencial cuidados por vezes camuflados de controle social dos desiguais” (DEMO, 1994, p.16).

Muitos até têm esperança de mudar sua realidade, mas a pobreza, a falta de profissionalização, somadas à falta de estudos, priva-os de verem suas histórias serem construídas de forma diferente. A pobreza em seu sentido mais amplo, não apenas carência material, mas a de espírito, pois o “que faz pobre é ser obrigado a passar fome, enquanto alguns comem bem à custa da fome da maioria” (DEMO, 1994, p.19). Na verdade, a pobreza é injustiça e má distribuição das vantagens sociais. As políticas curativas, que se prestam a auxílios paliativos são tendenciosas a criar mecanismos de controle social, uma vez que coloca a pobreza como uma sina, quando na realidade ela é causada e cultivada por atos de injustiça.
A função da política social deve ser emancipatória, possibilitando autonomia econômica, a autossustentação. Propiciando a autonomia política, cultivando a cidadania, para que em consequência possa emergir sujeitos de seu próprio destino, “aparecendo como condição de enfrentamento da desigualdade sua própria atuação organizada” (DEMO, 1994, p.25). Dessa forma, a assistência social não deve ser confundida com esmola ou piedade, nem tampouco caracterizar a fantasia de sair da miséria sob a dependência de ajudas que desmobilizam o potencia de cidadania do indivíduo.
São necessárias políticas participativas, em que “emerge a oportunidade iniludível de formação do sujeito social, consciente e organizado capaz de definir seu destino” (DEMO, 1994, p.37). As políticas devem ser, preventivas, em lugar de paliativas, não obstante sejam dispendiosas em razão de grandes investimentos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Mediante o tema abordado, percebe-se que é mister estimular o ingresso aos estudos e incitar a determinação para sua conclusão, apontando a importância da educação para  o desenvolvimento profissional, intelectual, e consequentemente, da  identidade humana.
A consequência disso é a conscientização, igualmente indispensável, visto que, somente por meio dela, as pessoas deixam de ser “marionetes”, “bonecos”, “cidadãos de papelão”, e, conhecendo seus direitos, praticam o exercício de cidadania, assumindo uma atitude de verdadeiros cidadãos conscientes e esclarecidos.
“Somente quem está no poder pretende pintar a história como não-conflituosa, dentro do estratagema milenar de desmobilizar os marginalizados” (DEMO, 1994, p.15). É a partir da formação da consciência crítica que se descobre que a pobreza é opressão, injustiça, e forma de manipulação oriundas do poder, sendo necessário o enfrentamento dessa situação para que de fato, exista o exercício pleno de cidadania. 
“Uma sociedade se faz de sujeitos capazes, não de objetos de cuidado” (DEMO, 1994, p.15). Isto ressalta o sentido de que o maior auxilio que as pessoas menos favorecidas podem receber é educação e profissionalização para que saiam da situação de subordinação e tenham autonomia tanto econômica, quanto política, a fim de serem capazes de construir suas próprias histórias como verdadeiros cidadãos.

REFERÊNCIAS BILIBLIOGRÁFICAS

SILVA, Tomaz Tadeu (Org.). HALL, Stuart. WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. 7ª. Ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.

HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução: Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. DP&A Editora, 11ª edição, Rio de Janeiro, 2006.

BAUMAN, Zygmunt. Vida para o consumo. Tradução: Jorge Zahar. Rio de Janeiro. Ed., 2008.

BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. Tradução: Carlos Felipe Moisés\Ana Maria L. Ioriatti. 2ª reimpressão. São Paulo:Companhia de Letras.ed. Schwarcz.2007.
           
PROUDHON, Pierre-Joseph. Sistemas das contradições econômicas ou Filosofia da miséria. Tradução: Antonio Geraldo da Silva. São Paulo, 2007, editora Escala.

BERGER, Peter L. LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade: o tratado de sociologia do conhecimento. 27ª ed. Tradução de Floriano de Souza Fernandes. Petrópolis, Vozes.2007.

DEMO, Pedro. Política social, educação e cidadania. Campinas, SP; Papirus, 1994. (Coleção magistério: Formação e trabalho pedagógico).

CÍCERO, Marco. Túlio. Os Deveres. São Paulo, editora Escala, 2008.

Disponível em: http://www.oteatromagico.mus.br 24.10.12 às 01:27 h


Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/O_Teatro_M%C3%A1gico 24.10.12 às 01:29

Um comentário:

  1. Parabéns pela análise sociológica, despertou em mim interesse pelo tema a medida que me trouxe esclarecimento de uma realidade social, em que o outro se torna invisível diante daqueles que mesmo enxergando perderam a capacidade de reconhecer nas diferenças o outro, como sujeito e individuo mesmo não habituado ou não se habituando ao sistema que o exclui. A miséria dos "sem identidade" é o grito da estupidez dos que se gabam por ter uma identidade!

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