AUSÊNCIA DO EXERCÍCIO
DE CIDADANIA: UMA CONSEQUÊNCIA DA FALTA DE IDENTIDADE HUMANA EM “CIDADÃO DE
PAPELÃO”, EM O TEATRO MÁGICO
MIRANDA, Evanilde (CESI/UEMA)
RESUMO: O objetivo da
análise do clipe da música Cidadão de papelão, de O Teatro Mágico é refletir
sobre a identidade humana. A ausência de proteção, garantida pela Constituição,
unidas às dificuldades e preconceitos enfrentados é o que coloca o sujeito à
margem da sociedade. O clipe retrata numa linguagem irônica, a falta de
identidade humana, mesclando trocadilhos, jogos de palavras e metáforas. O
cidadão de papelão é um homem que se torna produto do meio, quando não consegue
entender o que vivencia, apenas se habitua, não reage contra as circunstâncias,
atua como uma criatura sem convicção, uma vez que não possui o que prova sua
existência, um papel. O clipe é a caricatura da criação do cidadão de papelão
desconstruindo a ideia de exercício de cidadania. Esta proposição se baseia nos
estudos de Stuart Hall, sobretudo no que se refere à identidade do homem
contemporâneo e pós-moderno.
Palavras-chave: Teatro Mágico.
Videoclipe. Identidade.
ABSTRACT: The goal of
the analysis of the music video Citizen of cardboard, The Magic Theatre is a
reflection on human identity. The absence of protection, guaranteed by the
Constitution, together with the difficulties and prejudices faced is what puts
the subject on the margins of society. The clip portrays an ironic language,
lack of human identity, mixing puns, wordplay and metaphors. Cardboard Citizens
is a man who becomes a product of environment, when you can not understand the
experience that only gets used, it reacts against circumstances, acts as a
creature without conviction, since they do not have the proof that his
existence a paper. The clip is a cartoon creation of citizen cardboard
deconstructing the idea of exercising citizenship. This proposition is based on
studies of Stuart Hall, especially with regard to the identity of the
contemporary and postmodern.
Keywords: Magic Theatre. Video clip. Identity.
INTRODUÇÃO
A partir de várias teorias citadas nesse trabalho, sob a ótica, à
princípio, de Stuart Hall, expondo os três tipos de identidade humana, almejou-se
constatar que o sujeito abordado no vídeo clipe não possui uma identidade
humana. O presente artigo buscou nas teorias, explicações para a ausência de
identidade do indivíduo retratado na música objeto de análise, “Cidadão de
Papelão”, de O Teatro Mágico.
Inicialmente uma breve informação a respeito do grupo O Teatro Mágico e sua
composição “Cidadão de Papelão”, imprimindo seu estilo a partir da presença de
elementos literários, que, unidos às imagens do vídeo, contribuem para a análise
da música.
Em seguida, as linhas de pesquisa embasadas em Silva, Berger, Bauman,
Berman, Cícero, Proudhon e Demo, e suas contribuições sobre a construção\alteração
da identidade humana, as consequências de sua não existência e sua influência
na prática do exercício de cidadania.
Na sequência da pesquisa, a partir dos estudos de Berger, foram
abordadas as questões da institucionalização como definidora do que é ou não
identidade, e a construção da identidade humana, que se estabelece somente pela
internalização da construção da realidade. Silva ressalta a importância da
autoidentidade e da necessidade de firmar a identidade no meio social para que o
indivíduo não fique à margem da sociedade. O resultado dessa não afirmação é
enfatizado por Demo, ao tecer críticas às políticas sociais que veem nos menos
favorecidos, um alvo para práticas que não potencializam a dignidade humana.
E por último, as considerações finais da pesquisa apontando os problemas
e possíveis soluções mediadoras de modo a promover a formação da consciência
crítica, a autonomia política em detrimento da marginalização humana.
AUSÊNCIA DO EXERCÍCIO
DE CIDADANIA: UMA CONSEQUÊNCIA DA FALTA DE IDENTIDADE HUMANA EM “CIDADÃO DE
PAPELÃO”, EM O TEATRO MÁGICO
O Teatro Mágico é um
grupo musical brasileiro, criado em 2003 por Fernando Anitelli, músico,
compositor e ator. É um grupo independente, que não tem apoio de gravadoras ou
campanhas midiáticas. Suas composições são marcadas pela criatividade na
escolha de palavras que possibilitam a polissignificação, imprimindo um aspecto
literário nas canções com críticas sutis e denuncias sociais. O grupo possui
três discos: A entrada para Raros, Segundo Ato e Sociedade do Espetáculo.
O último traz a música Cidadão de Papelão, objeto desse trabalho.
A falta de identidade humana e o não-exercício de
cidadania
Na expressão “O
cara que catava papelão pediu um pingado quente”, o termo “cara” poderia
sugerir, a princípio, qualidades como esperto, gênio ou algo que o fizesse se
destacar. No entanto, assume um significado contrário, pois o artigo “o” o
generaliza, restringindo-o apenas no sentido de que é aquele que catava papelão.
O “pingado
quente” é o tipo de café mais simples e mais barato, que consiste em uma porção
de leite e um pingo de café. Isto sugere uma metaforização a esse “cara”. Aduz ao
seu próprio valor ou o estado em que se encontra, com pouco dinheiro, pois o
verbo “pediu”, embora seja usado para se referir ao ato de comprar, aqui soa,
de fato, como um pedido e não uma compra. Isto porque mais adiante acrescenta-se
“em maus lençóis, remetendo à ideia de que este se encontra numa
situação complicada, uma vez que é isso que a expressão “em maus lençóis” quer
dizer. Essa situação difícil, pode ser entendida como dificuldade financeira,
confirmada quando o “cara” pede o tipo mais barato de café.
Ademais, as
informações seguintes “nem voz, nem terno” reafirmam a ideia de
ausência de recursos financeiros, pois além de ser uma pessoa sem voz, sem
opinião, que não é ouvida, logo não interage de forma positiva com os demais, é
sem terno. A palavra terno assume duplo sentido, tanto o de que ele não
é um sujeito afetuoso, quanto o de substantivo, como um indivíduo sem status
social, sem algo para ostentar, ou simplesmente desfrutar, logo, sem motivos
para esbanjar afetuosidade, uma vez que está à margem de toda a rua.
De acordo com a
concepção de Proudhon (2007:65), “todo aquele que não tiver renda nem salário,
não tem o direito de exigir coisa alguma dos outros”. O dinheiro, nessa
perspectiva, influi na interação humana e nos próprios direitos civis. Em
consequência, o “cara” não é um ser social, visto que não dialoga com a
sociedade, nem desfruta de seus direitos, pois para Cícero
os
degraus da socialidade humana são múltiplos. [...] O vínculo mais restrito
consiste na pertença à mesma cidade. Aí muitas coisas são comuns entre os
cidadãos; as praças, os templos, as ruas, as leis, os direitos, os tribunais, o
voto, os costumes, a amizade, o comércio e a relação de interesses
compartilhados. (CÍCERO, 2008. p.78).
Esse cara, portanto, não é um cidadão, visto
que não possui direitos, não comunga das mesmas coisas e nem compartilha
interesses. Não é o que Stuart
Hall chamaria de sujeito com identidade, cujo “O sujeito do Iluminismo estava
baseado numa concepção da pessoa humana como um indivíduo totalmente centrado
[...] O centro essencial do eu era a identidade de uma pessoa” (HALL, 2006,
p.10,11). Portanto, essa indivíduo
centrado não é percebido no “cara” em questão, pois na verdade o que é
explícito é sua impossibilidade de ostentar algo diante da sociedade.
“À margem de toda
rua, sem identificação”,
Rua é um ambiente externo que remete ao social, às pessoas e à interação em sociedade, porém, ele está à margem, distante, separado, “sem identificação”, sem documentos, isto é, invisível. Como “[...]a identidade é formada na “interação” entre o eu e a sociedade” (HALL, 2006, p.11), entende-se que esse ser em questão, não possui, de fato, uma identidade humana, pois a interação com o outro não existe.
Rua é um ambiente externo que remete ao social, às pessoas e à interação em sociedade, porém, ele está à margem, distante, separado, “sem identificação”, sem documentos, isto é, invisível. Como “[...]a identidade é formada na “interação” entre o eu e a sociedade” (HALL, 2006, p.11), entende-se que esse ser em questão, não possui, de fato, uma identidade humana, pois a interação com o outro não existe.
A palavra
identificação remete tanto aos documentos pessoais, quanto a características
que especificam quem alguém é. Além de ele não possuir uma identidade diante da
sociedade, não possui os documentos pessoais. O que enfatiza ainda mais a
ausência do eu, da força de alguém de personalidade. Não
é um sujeito sociólogo em diálogo com os mundos culturais, tendo a interação como
a que “estabiliza tanto os sujeitos quanto os mundos culturais” (HALL, 2006,
p.12), é apenas um “cara” indefinido, sem nome, sem marca social.
A questão da
falta de documentos pessoais configura um grave obstáculo para o exercício de
cidadania, tendo em vista que sem este, não é possível identificar quem é
alguém. O documento vale mais que a palavra, e caracteriza um requisito para o
usufruto dos direitos fundamentais do cidadão, inclusive o de ser considerado
cidadão. É possível não possuir uma identidade humana e ter documentação
pessoal, todavia, não ter documentos impossibilita uma identidade pessoal, pois
sem estes, o sujeito é apátrido, sem personalidade jurídica e sem dignidade
humana, pois não existe socialmente.
A construção social da
realidade e da identidade humana
A expressão “Um
homem de pedra, de pó, de pé no chão” traz vocábulos fortes que
enfatizam informações sobre ele, apontado-o como um homem rústico. A pedra, aduz
à dicotomia do caráter sujeição/subjetividade, retratada por Foucault,
importante no processo de formação do sujeito. A pedra como obstáculo, remete à
ausência da internalização da construção da realidade, caracterizando o não ser
o que se espera, não seguir paradigmas, a ser o que atrapalha, logo, a razão
para estar à margem.
Em consequência
disso, ele é apenas algo e segundo (Souza apud Hirst, 1979, p.65)“ esse algo
que ainda não é sujeito deve já ter as faculdades necessárias para realizar o
reconhecimento que o constituirá como sujeito” (SOUZA, 2007.p.15). A identidade
é, portanto, origem de uma construção
social, visto que é preciso sujeição ao que é imposto, para que o processo de
identificação ocorra. Em razão de ser por meio das práticas (regras/normas) que
os sujeitos são levados a se observarem, se reconhecendo ao estabelecer “de si
para consigo uma certa relação que lhes permite descobrir , no desejo, a
verdade do seu ser” (SOUZA, 2007, p.124)
e é desse modo que a subjetividade aparece, possibilitando a formação da
identidade humana.
O “pó” como
o que incomoda mesmo tendo existência frágil, podendo ser eliminado a qualquer
momento, se mostra como a fotografia desse ser que apenas sobrevive. De “pé
no chão” revela gradativamente a situação desse homem, descalço,
desprotegido, sem ninguém por ele. Remete também à ausência da proteção
garantida pela Constituição, aos direitos que, por lei, todos têm. Entretanto,
para o seu usufruto é necessário provar que é alguém, é preciso existir
socialmente. Esse homem não tem identificação. Não tem voz, não tem ninguém.
Não tem crédito, não é ninguém, nem interage de com o outro.
Quando se diz “Sem
vocação, sem convicção” entende-se que esse homem não tem profissão, um
meio fixo, estável para garantir seu sustento. Nem convicção, nem sonhos ou
perspectivas de vida. Na expressão anterior, “de pé na cova”, seu
destino já está determinado. Semelhante ao pó, que é eliminado porque incomoda,
a sua morte é deliberada, pois depois de ser invisível, seu último estado é a
cova, o fim, a inexistência de fato. Para Berger e Luckmann, a “[..] identidade
é um fenômeno que deriva da dialética entre um indivíduo e a sociedade” (BERGER
& LUCKMANN, 2007, p.230) e como esse homem está à margem dela, a morte
física alude à situação de morte (não-existência) da identidade humana.
À margem de toda
candura, remete ao estar distante da delicadeza, da polidez, da “civilização”, da
modelagem que a sociedade impõe. Ingênuo, não conhece seus direitos, nem a
possibilidade de lutar por eles. É alguém, sem educação sistematizada, sem
ostentação, sem convicção, desprovido de tudo o que poderia atrair a atenção
dos demais. Como “o indivíduo não nasce membro da sociedade” (BERGER &
LUCKMANN,2007, p.173), é preciso induzi-lo à sociabilidade a fim de apreender a
identidade subjetiva. O “homem de pedra” necessita passar pela socialização
para tomar conhecimento de sua realidade subjetiva e deixar de ser um sujeito
sem identidade humana.
O “papo”,
conforme o dicionário Aurélio, é o local onde se guarda alimentos antes de
serem eliminados. Emblematicamente, o cara que catava papelão é o que colhe
aquilo que teria o lixo como destino final. Num trocadilho ao estado em que se
encontra, catador é aquele que cata dor, em virtude de ele manter-se,
dia-após-dia, numa situação difícil.
“Um sopapo” lembra bofetada, tabefe, atitude agressiva.
Sugere a atitude que o sujeito sem identificação recebe de outros que se julgam
superiores a ele, pois no vídeo, um homem calçando sapatos de marca chuta o papelão,
e o papelão faz alusão a esse homem sem aparente importância. Está implícito
uma forte crítica ao homem “polido”, “educado”, que age de modo contrário ao
que se espera de alguém civilizado. Nesse aspecto, é dual o sentido de cidadão
de “papelão”, sendo tanto aquele que está à margem, esquecido, quanto o socialmente
aceito como cidadão. Enquanto o primeiro é um “papelão” no sentido de frágil e
abandonado por não transmitir tanta importância, o segundo, está como acepção à
vergonha, pela falta de empatia e respeito aos menos favorecidos.
A tríplice da miséria humana: Pobreza, trabalho e
concorrência
“Cria a dor, cria e atura”, se levada em consideração apenas a sonoridade, entende-se
criador, criatura, remetendo à criação, à figura divina do Criador como Pai que
protege a criatura humana. Porém, a letra mostra mais do que dois substantivos,
mostra ações (cria e atura) que constroem um paradoxo sobre a situação. Uma dor
que é criada pela sociedade (que ostenta) e que a cria (criatura-produto desse
meio) atura tal circunstância.
No vídeo, paralela à imagem de um cara solitário,
há um homem diferente dele. “Roupa cara” é o enunciado da camisa desse homem
que é ovacionado por outros que o rodeia. Na sequência, há um mendigo de mão
estendida, enquanto as pessoas passam indiferentes. Assim, é perceptível a
ideia de desigualdade social e a dependência da relação de dominação, visto que
a sociedade também deve aturá-la para que haja a perpetuação da dicotomia
dominador/dominado.
Nessa perspectiva, as “roupas
passam a ser o emblema do velho e ilusório estilo de vida” (BERMAN,
2007, p.131), em que o poder que o capitalismo possibilita, exibe o status
como determinante para a importância e aceitação social do indivíduo. A
excessiva busca pelo bem-estar e aceitação social, funcionam como modificadores
das culturas e, inevitavelmente, implica nas concepções e relações humanas,
desarticulando identidades e também possibilitando outras novas.
“O cara
que catava papelão pediu um pingado quente, em maus lençóis, à sós”. A
expressão é repetida, enfatizando seu estado de abandono: sem ninguém que o
defenda. Em “a sós” é reafirmada a ausência de mais um tipo de
sujeito, o sujeito sociólogo, segundo Hall (2006), produzido por meio de uma
modelagem a partir do outro. O que implica dizer que o homem é um
produto social, sendo impossível que o indivíduo solitariamente se desenvolva
como homem.
Para
Hall (2006) a interação social é fundamental para a construção da identidade
humana do sujeito sociólogo, que não é autossuficiente e por isso necessita
dessa troca de valores, símbolos e crenças. Berger e Luckmann, afirmam que “os
homens em conjunto produzem um ambiente humano, com a totalidade de suas
formações socio-culturais e psicológica” (BERGER & LUCKMANN, 2007, p.75).
O
catador de papelão, entretanto, não possui uma identidade humana. Não é
apresentada nenhuma característica que o enquadre numa categoria de identidade.
Não se sabe se é negro ou branco. Não é trabalhador, nem estudante. Não aparece
seu nome nem termos como “alguém”, “pessoa”. É apenas o “cara”, o “catador”. E
finalmente, quando aparece o termo “homem” não é colocando-o na categoria de
identidade de gênero percebendo o masculino como um arquétipo de pai de
família, ou provedor, parece apenas informar que esse ser não é uma mulher. Assim,
entende-se que ele é apresentado não como pessoa, pois para Berger e Luckmann,
“ao dizer “pessoas”, supomos que os [...] indivíduos tenham personalidades
formadas, coisa que evidentemente só poderia ter acontecido em um processo social”
(BERGER & LUCKMANN, 2007, p.81). Porém, como um “ser humano solitário é um
ser no nível animal”, uma vez que a humanização tem sentido sócio-cultural, ele
não é um ser social, pois não passou por esse processo de internalização
objetiva das instituições sociais.
O temo “sem farda” reafirma que ele
não possui profissão, pois a farda é algo comum a estudantes e trabalhadores.
Exclui, portanto, a possibilidade de esse catador ser o profissional gari. Ele
é colocado como inferior ao próprio gari, que apesar de também não ser admirado
pelo serviço que presta, tem um meio de garantir seu sustento e é lembrado por
sua farda. O catador, na verdade, não se enquadra na categoria trabalhador, não
obstante desempenhe uma atividade, ele é apenas um ser que cata para sobreviver.
Assim sendo, há uma desconstrução da ideia de
trabalho como sendo o que dignifica o homem, pois na realidade não é qualquer
trabalho que o dignifica, mas aquele que traz reconhecimento, status e
ostentação. O trabalho, nesse aspecto, é sentido literalmente como
castigo em consequência do pecado edênico, um sacrifício para se sobreviver,
uma luta constante contra a miséria.
Essa
visão negativa do trabalho é apreendida nas ideias do economista Thomas Robert
Malthus, ainda em meados do século XVII:
Um homem que nasce
num mundo já ocupado, se sua família não possui meios de alimentá-lo ou se a
sociedade não tem necessidade de seu trabalho, esse homem, repito, não tem o
menor direito de reclamar uma porção qualquer de alimento: está em demasia na
terra. No grande banquete da natureza, não há lugar para ele. A natureza lhe
ordena que se vá e ela mesma não tardará a colocar essa ordem em execução (PROUDHON, 2007, p.65)
Por conseguinte,
o trabalho é mais que uma necessidade, é uma institucionalização, um requisito
para o valorização do homem e para o direito de reivindicar alguma coisa. Conforme
Bauman (2008), a infelicidade do homem, portanto, é culpa somente dele. E assim
se estabelece a concorrência, uns buscando desenfreadamente a riqueza, enquanto
outros, concomitante afundam na mais profunda miséria. A concorrência de status assume tal importância
porque possibilita a aceitação e reconhecimento por parte da sociedade.
Estamos diante de uma sociedade que não quer mais ser pobre, que zomba de
tudo aquilo que outrora lhe foi caro e sagrado, a liberdade, a religião e a
glória, senão tiver riqueza; que para obtê-la, suporta todas as afrontas, se
torna cúmplice de todas as fraquezas: e essa sede ardente de prazer, essa
vontade irresistível de chegar ao luxo, sintoma de um novo período da
civilização, é o mandamento supremo, em virtude do qual devemos trabalhar para
a expulsão da miséria (PROUDHON, 2007, p.41).
Outrora, a máquina fora tanto o emblema de
dominação da natureza, quanto da extensão de escravidão humana pelo trabalho. Agora
a máquina é o próprio homem, submetendo-se ora à mais-valia, ora ao mínimo para
a subsistência. Em oposição à sociedade que ostenta porque pode ostentar,
existem aqueles que lutam para pelo menos parecer que ostentam. Mas há também
um terceiro tipo: aqueles que não têm nada a ostentar, nem mesmo o sentir-se
humano. O vídeo mostra “o cara”, acordando, juntando a cabeça ao corpo e
seguindo, como que mecanicamente para mais um dia de labuta. O estar separado
da cabeça sugere que ele não é dotado das capacidades de consciência, de
razão e de ação. Não é
autossuficiente, não possui convicções, nem sonhos. Assim não é um
sujeito do Iluminismo.
A
ausência do exercício de cidadania é uma consequência de falta de identidade
humana
Na expressão “Sem papel, sem assinatura, se
reciclando vai” há a ratificação da ideia de que o catador não possui
uma educação sistematizada, não sabe ler, assinar, nem tem o papel. O “papel”
pode ser entendido como os documentos que provam quem ele é. Também como a
identidade humana, o ser alguém na vida, ter um papel social. De acordo com a
Constituição todos são iguais e merecedores dos mesmos direitos, entretanto, para
o seu usufruto, não basta existir, é necessário que o indivíduo prove quem ele é.
Sem documentação a pessoa encontra-se lesada em seus direitos fundamentais ao
nome, nacionalidade, personalidade jurídica e dignidade humana. E desse modo, está impossibilitada de por em
prática o exercício de cidadania e ter uma função social.
Para que o indivíduo adquira identidade é
necessário que internalize as instituições para se tornar membro da sociedade e
então, praticar o exercício de cidadania. Berger e Luckmann asseveram que
ninguém nasce membro da sociedade, “somente depois de ter realizado este grau
de interiorização é que o indivíduo se torna membro da sociedade” (BERGER
& LUCKMANN, 2007, p.175). Em
decorrência disso, surge a necessidade da afirmação da identidade,
estabelecendo uma conexão com relação de poder entre identidade e diferença. A
relação de domínio é caracterizada pelo poder de definir o que é ou não
identidade, tendo em vista que é a diferença que possibilita a existência da
identidade.
Hall declara que as identidades “emergem no
interior do jogo de modalidades específicas de poder e são, assim, mais o
produto da marcação da diferença e da exclusão” (SILVA, 2007, p.109). Portanto,
o catador, não é membro social, visto que não possui as experiências que o
definiriam como sendo ser social. O fato de ser diferente da sociedade da qual
está à margem, insinua o poder que ela tem de defini-lo como um ser sem
identidade por ele se desviar das normas que o tornariam cidadão. Consequentemente,
não há identidade sem o constrangimento das regras e a atenção escrupulosa da
regulamentação das normas.
As marcas
da exclusão social são percebidas na ausência de nome, trabalho, voz, convicção
e interação social, como empecilho para o processo de humanização e poder tornar-se
um cidadão. Ademais, “sem assinatura”, denuncia o grave problema social, a
falta de estudos, que gera outros tantos problemas, pois a falta de instrução
formal, torna cegos aqueles que não a possuem, os tornando invisíveis para a
sociedade.
[...]organizar o ensino é dar
a cada cidadão a promessa de um emprego liberal e de um salário confortável;
esses dois termos estão tão intimamente ligados como a circulação arterial e a
venosa. Mas a teoria de Dunoyer implica também que o progresso é verdadeiro
apenas para certa elite da humanidade e que para os nove décimos do gênero
humano a barbárie é a condição perpétua (PROUDHON, 2007, p.137).
A realidade da educação como privilégio apenas para
alguns faz com que muitos não sintam nem a necessidade de possuí-la. Essa falta
de expectativas sobre a educação é reflexo da situação de miséria humana. Quanto
mais difícil é a aquisição do saber, mais lógico se torna a ausência do desejo
de conquistá-lo.
Os mais
miseráveis selvagens e os menos esclarecidos dos homens são precisamente
aqueles aos quais é mais difícil dar necessidades, aqueles a quem se inspira
com mais dificuldade o desejo de sair de seu estado (PROUDHON, 2007.p. 142).
Isto evidencia que o homem precisa saber o que é bem-estar
para sentir a necessidade de possuí-lo. O cidadão de papelão é ingênuo, não conhece
seus direitos, não sabe que existe a possibilidade de mudar sua realidade, por
isso não tem esperança nem aspirações, apenas vai deixando a vida o levar.
Assim, permanece “à margem de toda candura”.
Se valendo do estilo de O Teatro Mágico, que em suas composições, brinca com a arbitrariedade das palavras, pode-se perceber a candura como “alvo” em dois sentidos, como “branco” e como “mira\objetivo”. Distante da “civilização”, daquilo que a sociedade institucionaliza, sem estudos, profissão e desprovido do que poderia atrair a atenção dos demais, ele é apenas um cara, um sujeito apátrido, sem personalidade jurídica. Distante dessa “brancura”, dessa nitidez, torna-se a sujeira da sociedade, a parte feia que não deve está às claras, mas escondido, invisível. Consequentemente, não é o objetivo, a preocupação, o alvo de interesse dessa sociedade, sendo portanto, segregado dela e por ela.
Se valendo do estilo de O Teatro Mágico, que em suas composições, brinca com a arbitrariedade das palavras, pode-se perceber a candura como “alvo” em dois sentidos, como “branco” e como “mira\objetivo”. Distante da “civilização”, daquilo que a sociedade institucionaliza, sem estudos, profissão e desprovido do que poderia atrair a atenção dos demais, ele é apenas um cara, um sujeito apátrido, sem personalidade jurídica. Distante dessa “brancura”, dessa nitidez, torna-se a sujeira da sociedade, a parte feia que não deve está às claras, mas escondido, invisível. Consequentemente, não é o objetivo, a preocupação, o alvo de interesse dessa sociedade, sendo portanto, segregado dela e por ela.
O verso “Homem de pedra, de pó, de pé no
chão” traz vocábulos fortes que
enfatizam informações sobre ele, apontado-o como frágil e ingênuo. A pedra,
aduz ao não ser modelado pela sociedade. O chão indica uma desigualdade social,
o estar à baixo, ser inferior. O “pó”, como o que incomoda, é a alegoria
a esse homem que tem como certeza apenas a morte, pois o “chão”, lembra o termo
“de pé na cova”, anunciada na primeira parte da música.
Como disse Proudhon (2007: 65) “A
natureza lhe ordena que se vá e ela mesma não tardará a colocar essa ordem em
execução”. Sucessivamente a situação do
homem é apresentada deixando implícito seu último estado, como a eliminação de
fato. Destarte, a ausência da identidade humana alude à própria morte física.
Em Não habita, se habitua”, o verbo
habitar indica certa estabilidade, pois é sinônimo de morar, residir, ter um
lugar. Mas essa estabilidade é vedada a esse homem, uma vez que ele não a
possui, vai habituando-se apenas, sobrevivendo ou insistindo em existir. O reciclar, todavia, pode
sugerir a possibilidade de ele adquirir identidade e dignidade humana se se
permitir passar por um processo de mudança.
No clipe, há homens trajados de roupa social, de
maleta na mão, lembrando múmias, sugerindo uma produção em série de homens que fazem
parte da sociedade cujo “cara” está à margem.
Em outra imagem, dirigindo um carro, vê-se uma figura de penas na
cabeça, lembrando o índio das tribos. As imagens lançam de modo sutil, críticas
às concepções que a sociedade cria quando impõe paradigmas para que as pessoas
sejam aceitas no meio social. A visão estereotipada do índio como um ser “ignorante
e sem educação” é substituída por outra, de um índio “civilizado”, depois de passar
por uma modelagem social. Assim, ele apreendeu a cultura do branco, e não
deixou de lado sua identidade cultural, mas a ampliou.
O indígena, nesse aspecto, diferente do cidadão de
papelão, é um sujeito sociólogo, pois “a identidade, nessa
concepção sociológica, preenche o espaço entre o "interior" e o
"exterior"— entre o mundo pessoal e o mundo público” (HALL, 2006,
p.11). Somente
por meio da conscientização é que as pessoas conseguem sair de um estado de
degradação social e interagir socialmente de forma satisfatória. Nesse sentido,
não só o relacionamento interpessoal, como também o intrapessoal, são
fundamentais para o processo de transformação de mente e busca de identidade e
dignidade humana.
“É este conhecimento apreendido no curso da socialização
e que serve de mediação da interiorização pela consciência individual das
estruturas objetivas do mundo social” (BERGER & LUCKMANN, 2007, p.94). É
necessário, portanto, que o indivíduo conheça o universo simbólico e não esteja
apenas inserido nele, pois sua capacidade de atribuições de significações
excede o domínio de vida social.
Efeitos paliativos:
perpetuação da falta de dignidade humana
É relevante reiterar que embora o indivíduo seja
produto do meio, também pode transformar o meio em que vive. Todavia, isso
acontece somente quando adquire conhecimento sobre sua real situação e muda sua
mentalidade.
Psicanaliticamente,
nós continuamos buscando a "identidade" e construindo biografias que
tecem as diferentes partes de nossos eus divididos numa unidade porque
procuramos recapturar esse prazer fantasiado da plenitude (HALL, 2006, p.39).
Não obstante muitas vezes as pessoas encontrem
oportunidades de mudar, é impedido por forças maiores que o sufocam e não dão
estrutura para que a mudança de fato ocorra. Mas a partir da ciência de seu
estado, uma mudança primeiro interior ocorrerá e posteriormente será refletida
na sociedade. Entretanto, Bauman não vê essa mudança de forma positiva,
pois para ele:
[...] a identidade é
uma pena perpétua de trabalhos forçados.[...] Uma vez posto em movimento ainda
na tenra infância, a composição e o desmantelamento da identidade se torna uma
atividade autopropulsora, e autoestimulante (BAUMAN, 2008, p.142).
Enquanto
Hall considera a identidade uma celebração móvel, Bauman (2008) a percebida de
forma negativa, por ser inacabada e implicar o constantemente iniciar do zero. Isto
porque a sociedade passar a estimular essa renovação do indivíduo, sob o rótulo
da busca da auto identificação.
Em oposição ao pensamento de Bauman, Hall tece
suas ideias sobre a identidade afirmando que ela se torna uma
"celebração móvel" “formada e transformada continuamente em relação
às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas
culturais que nos rodeiam” (HALL, 2006, p.13). Uma vez que a identidade não é
algo fixo, muda de acordo com a forma que o sujeito reage ao estado em que se
encontra, podendo assumir, não mais uma, mas várias identidades diferentes em
diferentes circunstâncias. Isto suscita a necessidade da autoidentidade, que
está em conexão com a dúplice incluir/excluir, “se a identidade consegue se
firmar é apenas por meio da repressão daquilo que ameaça” (BERGER &
LUCKMANN, 2007, p.110).
O dia 3 de junho de 2012 foi o fim da vida de
catador para 1,7 pessoas que se despediram do aterro de Gramacho, no Rio de
Janeiro. A indenização de R$ 14.000,00 que receberam deveria ser o ponto de
partida para que mudassem suas histórias e criassem expectativas de vida, porém
a quantia pagou o teto e não garantiu o sustento de muitas famílias sem
profissão. Nesse caso o dinheiro não foi a solução. Uma mentalidade diferente,
educação sistematizada e qualificação profissional surtiriam mais efeito do que
recurso em espécie, embora o secretário municipal de Conservação do RJ, Carlos Roberto
Osório, tenha afirmado: "O aterro fecha com os catadores recebendo a justa
compensação”.
A assistência social traz auxílios que imprimem a desigualdade
social, perpetuando a situação de subordinação dos menos favorecidos, assim
“predominando de modo tendencial cuidados por vezes camuflados de controle social
dos desiguais” (DEMO, 1994, p.16).
Muitos até têm esperança de mudar sua realidade, mas a pobreza,
a falta de profissionalização, somadas à falta de estudos, priva-os de verem
suas histórias serem construídas de forma diferente. A pobreza em seu sentido
mais amplo, não apenas carência material, mas a de espírito, pois o “que faz
pobre é ser obrigado a passar fome, enquanto alguns comem bem à custa da fome da
maioria” (DEMO, 1994, p.19). Na verdade, a pobreza é injustiça e má
distribuição das vantagens sociais. As políticas curativas, que se prestam a
auxílios paliativos são tendenciosas a criar mecanismos de controle social, uma
vez que coloca a pobreza como uma sina, quando na realidade ela é causada e cultivada
por atos de injustiça.
A função da política social deve ser emancipatória,
possibilitando autonomia econômica, a autossustentação. Propiciando a autonomia
política, cultivando a cidadania, para que em consequência possa emergir
sujeitos de seu próprio destino, “aparecendo como condição de enfrentamento da
desigualdade sua própria atuação organizada” (DEMO, 1994, p.25). Dessa forma, a
assistência social não deve ser confundida com esmola ou piedade, nem tampouco caracterizar
a fantasia de sair da miséria sob a dependência de ajudas que desmobilizam o
potencia de cidadania do indivíduo.
São necessárias políticas participativas, em que “emerge a
oportunidade iniludível de formação do sujeito social, consciente e organizado
capaz de definir seu destino” (DEMO, 1994, p.37). As políticas devem ser,
preventivas, em lugar de paliativas, não obstante sejam dispendiosas em razão
de grandes investimentos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Mediante o tema abordado, percebe-se que é mister
estimular o ingresso aos estudos e incitar a determinação para sua conclusão,
apontando a importância da educação para
o desenvolvimento profissional, intelectual, e consequentemente, da identidade humana.
A consequência disso é a conscientização, igualmente
indispensável, visto que, somente por meio dela, as pessoas deixam de ser
“marionetes”, “bonecos”, “cidadãos de papelão”, e, conhecendo seus direitos, praticam
o exercício de cidadania, assumindo uma atitude de verdadeiros cidadãos
conscientes e esclarecidos.
“Somente quem está no poder pretende pintar a
história como não-conflituosa, dentro do estratagema milenar de desmobilizar os
marginalizados” (DEMO, 1994, p.15). É a partir da formação da consciência
crítica que se descobre que a pobreza é opressão, injustiça, e forma de
manipulação oriundas do poder, sendo necessário o enfrentamento dessa situação
para que de fato, exista o exercício pleno de cidadania.
“Uma sociedade se faz de sujeitos capazes, não de
objetos de cuidado” (DEMO, 1994, p.15). Isto ressalta o sentido de que o
maior auxilio que as pessoas menos favorecidas podem receber é educação e
profissionalização para que saiam da situação de subordinação e tenham
autonomia tanto econômica, quanto política, a fim de serem capazes de construir
suas próprias histórias como verdadeiros cidadãos.
REFERÊNCIAS BILIBLIOGRÁFICAS
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Kathryn. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. 7ª. Ed.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.
HALL, S. A identidade cultural na
pós-modernidade. Tradução: Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. DP&A
Editora, 11ª edição, Rio de Janeiro, 2006.
BAUMAN, Zygmunt.
Vida para o consumo. Tradução: Jorge Zahar. Rio de Janeiro. Ed., 2008.
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a
aventura da modernidade. Tradução: Carlos Felipe Moisés\Ana Maria L. Ioriatti.
2ª reimpressão. São Paulo:Companhia de Letras.ed. Schwarcz.2007.
PROUDHON, Pierre-Joseph. Sistemas das contradições
econômicas ou Filosofia da miséria. Tradução: Antonio Geraldo da Silva. São
Paulo, 2007, editora Escala.
BERGER, Peter L. LUCKMANN,
Thomas. A construção social da realidade: o tratado de
sociologia do conhecimento. 27ª ed. Tradução de Floriano de Souza Fernandes.
Petrópolis, Vozes.2007.
DEMO, Pedro. Política social, educação e cidadania.
Campinas, SP; Papirus, 1994. (Coleção magistério: Formação e trabalho
pedagógico).
CÍCERO, Marco. Túlio. Os Deveres. São Paulo,
editora Escala, 2008.
Disponível
em: http://www.oteatromagico.mus.br
24.10.12 às 01:27 h
Disponível
em: http://g1.globo.com/bom-dia-brasil/noticia/2012/06/gramacho-sera-fechado-domingo-e-catadores-recebem-indenizacao.html 18.09.12 às .... 00:00 h
Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/O_Teatro_M%C3%A1gico
24.10.12 às 01:29
Parabéns pela análise sociológica, despertou em mim interesse pelo tema a medida que me trouxe esclarecimento de uma realidade social, em que o outro se torna invisível diante daqueles que mesmo enxergando perderam a capacidade de reconhecer nas diferenças o outro, como sujeito e individuo mesmo não habituado ou não se habituando ao sistema que o exclui. A miséria dos "sem identidade" é o grito da estupidez dos que se gabam por ter uma identidade!
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