sábado, 12 de outubro de 2013

O discurso na música Sem açúcar, de Chico Buarque

Evanilde Miranda e Mahalla Stephanny


Todo dia ele faz diferente, não sei se ele volta da rua
Não sei se me traz um presente, não sei se ele fica na sua
Talvez ele chegue sentido, quem sabe me cobre de beijos
Ou nem me desmancha o vestido, ou nem me adivinha os desejos
Dia ímpar tem chocolate, dia par eu vivo de brisa
Dia útil ele me bate, dia santo ele me alisa
Longe dele eu tremo de amor, na presença dele me calo
Eu de dia sou sua flor, eu de noite sou seu cavalo
A cerveja dele é sagrada, a vontade dele é a mais justa
A minha paixão é piada, sua risada me assusta
Sua boca é um cadeado e meu corpo é uma fogueira
Enquanto ele dorme pesado eu rolo sozinha na esteira
E nem me adivinha os desejos
Eu de noite sou seu cavalo
Eu rolo sozinha na esteira


Música de 1975 composição de Chico Buarque LP: Chico Buarque e Maria Bethânia



Em oscilações de lá menor e lá maior vem retratar o cotidiano de um casal. O eu lírico feminino demonstra um sentimento de insatisfação diante de sua relação. Isto é percebido na dramaticidade causada pela potência do timbre grave do contralto de Maria Bethania.

As metáforas são percebidas tanto na questão musical quanto no aspecto semântico, pois a letra traz uma narrativa sob a visão de uma mulher insatisfeita, é o discurso dela a respeito dele que é apresentado. A forma como a composição foi harmonizada, com notas prolongadas (ligaduras) lembram o próprio ato de chorar, sugerindo que ela conta sua história, em prantos, desabafa seu sofrimento. Parece cantar em notas cortadas que dão ideia de corte, de algo abrupto, de desequilíbrio, tal qual sua desarmônica relação.

Nesse sentido, portanto, entende-se que a melodia dialoga com o texto musical e que o sentido da canção é apreendido a partir dessa junção. Nela é fortemente enfatizada a tensão do enunciador, seu estado de espírito, do impacto sentido enquanto o conteúdo é narrado. O próprio título vem sugerir que as coisas não estão bem, pois o termo sem açúcar, sugere algo sem doçura, sem sabor.

Nos três primeiros versos o eu poético inicia falando da figura masculina, que “todo dia ele faz diferente” e que ela já não sabe ao certo quais suas atitudes. Isto traz o sentido de que ambos não têm a cumplicidade de um casal, que eles não se conhecem mais, que o relacionamento tornou-se algo distante, pois ela (o sujeito poético) não tem noção de quando ele fica magoado nem sabe quando ele chegará enchendo-a de beijos.

No quarto verso ela acrescenta que não sabe se ele lhe “desmancha o vestido, ou nem me adivinha os desejos.” Aqui a questão sexual é percebida, lembrando as mulheres de alguma época em que esperavam o marido “a procurarem” para o ato sexual. Elas eram totalmente dependentes da boa vontade dos maridos para se sentirem satisfazer as necessidades sexuais.

Em 1975, época em que a música foi composta, foi decretado o dia Internacional da Mulher. A década de 70 foi marcado pelo surgimento de muitos movimentos feministas e mulheres com diferentes orientações sexual, além de muitos debates sobre o novo comportamento do gênero feminino. Entretanto, nem todas agiam assim, muitas mulheres ainda eram escravas sexuais dos maridos. É só lembrar da novela Gabriela (1975), adaptação do romance de Jorge Amado, que mostra o quanto a sociedade possuía um discurso machista e opressor da figura feminina.

Na canção Sem açúcar, vê-se uma mulher semelhante, que “em dia útil” apanha, e só “em dia santo” ele a alisa. Os dias úteis são 5, semanas, com ideia de constâncias, de frequência, e estes são os dias nos quais ela apanha. Carinho ela recebe de vez em quando, em esporádicos feriados.

Vê-se a figura da mulher “Amélia”, mais que submissa, oprimida pela “virilidade”, pelo machismo do marido, que diante dele “se cala”, estremece de amor e cede aos seus caprichos. Que de dia é uma flor, é frágil, delicada, mas de noite é um cavalo, um animal que seu “dono” faz uso levando em consideração apenas seus desejos.

Ele é um homem da farra, uma vez que ela diz que a cerveja dele é sagrada.  Isto sugere que ela não pode faltar, que suas vontades são inquestionáveis, pois ela diz “sua vontade é sempre justa”. Ela é uma mulher que ama e não é compreendida nem correspondida, visto que sua paixão é para ele uma piada e sua risada a assusta. Sua risada, alegria não é algo comum, ele é apresentado como um homem grosseiro, que não demonstra carinho nem amor pela esposa, que não estabelece diálogo com ela, que “sua boca é um cadeado”.

Desse modo, é possível perceber que ele não tem cumplicidade nem intimidade com ela, pois ele sente o próprio corpo como“uma fogueira”. Essa expressão, metaforicamemente, alude ao desejo de satisfação sexual, e também à falta de carinho, de amor. Aí está implícito o discurso da mulher vitimizada, sem voz, sem direito a reclamar. 

Nisto se nota a relação com a ideia de Foucault sobre o discurso, sobretudo no que diz respeito à interdição, pois a produção do discurso é sempre controlada, selecionada, organizada, redistribuída por certo número de procedimento. Ele afirma, “sabe-se bem que não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer circunstância” (FOUCAULT,1999, p. 9), sendo nesse sentido, um discurso interdito.   

A mulher como aquela q não tem direito de falar, de questionar, é percebida no próprio discurso do eu poético, pois é por meio de interdições que ela expressa sua dor. Ela não diz: "preciso de sexo", ela diz: enquanto ele dorme, eu rolo na esteira". Enquanto ele dorme tranquilo, ela rola sozinha na esteira e ele não percebe, “não advinha seus desejos”, deia que é confirmada quando ela retoma, “eu de noite sou seu cavalo, e rolo sozinha na esteira”.

Ela enfatiza sua angústia e não realização enquanto mulher e esposa, por meio da sensação de ser usada como um animal. E não com um animal de estimação que ela se compara, é um cavalo, aquele que serve para um fim, para o trabalho, e assim como ele, é vista como o que não tem o direito de ser respeitado em suas necessidades e vontades.

O modo como a música é finalizada, como se a gravação não tivesse sido toda gravada, sugere a falta de harmonia entre esse casal, assim como as oscilações das notas em lá menor e maior também vem enfatizar o descompasso em que vivem.

A música como arte, apresenta a informação estética, de modo que se percebe um diálogo com a contemporaneidade, pois não a mensagem da melodia não envelhece, uma vez que a harmonia da letra da música com a forma que é cantada (expressão dos sentimentos na voz do enunciador) e da própria técnica musical, podem ser sentidos por todo aquele que se entrega a desfrutar aos prazeres da arte. 

Pois de acordo com Aranha & Martins (2009) na experiência estética é estabelecido um acordo entre a natureza e o sujeito em uma espécie de comunhão na qual o sentimento é a via de acesso. O objeto estético é, nesse aspecto, o lugar do sensível, pois é por ele que é dado todo sentido. 

É possível notar o sujeito histórico de modo que a mulher como minoria,  sob o peso do discurso machista, é dominada e agredida pelo homem. Desse modo, possibilita que o ouvinte, por meio da harmonia da mensagem apresentada e da forma como é expressada, desperte sensações que o familiariza ao contexto, não obstante as épocas sejam diferentes. 

Isto porque a  arte como forma de pensamento, “é uma forma privilegiada de entendimento intuitivo de mundo, tanto para o artista que cria obras concretas e singulares, quanto para o apreciador que se entrega a elas para penetrar-lhe o sentido” (ARANHA & MARTINS, 2009. p.418). Nessa perspectiva, percebe-se que o entendimento de mundo não acontece de um modo fixo, apenas a partir de conceitos organizados de forma lógica, mas também por meio da intuição.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARANHA, Maria Lúcia. MARTINS, Maria Helena. Filosofando: Introdução à filosofia. Vol. Único; moderna, 2009.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Aula inaugural no Collége de France, pronunciada em 2 de setembro de 1970. Tradução: Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Edições Loyola, 1999.










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