sábado, 12 de outubro de 2013

Resenha do filme O discurso do rei

O Discurso do rei (The King's Speech) é um filme britânico, de 2010, escrito por David Seidler sob a direção de Tom Hooper. A trama que retrata a história de superação da gagueira do rei George VI, o Berthy, interpretado por Colin Firth, traz como contexto histórico a Segunda Guerra Mundial e uma narrativa contendo vários tipos de discurso.

Os tipos de discursos encontrados no filme são todos retratados por  Adilson Citelli: discurso dominante, discurso autoritário, discurso autorizado, discurso polêmico e discurso lúdico. E alguns explanados por Afrânio Garcia: discurso sedutor, discurso amoroso, discurso emocional e discurso servil.

O discurso autoritário se dá quando o rei George V (Michael Gambon) ordena que o duque Berthy vença a gagueira lendo o discurso. Impõe o dever de ser seu sucessor em lugar de Edward (Guy Pearce), em razão de ele estar com uma mulher divorciada, Wallis (Eve Best). As palavras do pai são imperiosas “faça isto!”.
O discurso dominante é percebido no momento em que o protagonista o realiza como monarca, tentando fazer com que o povo veja nele confiança em meio aos rumores da guerra. O discurso autorizado é explicitado na cena em o duque reproduz o que seus médicos afirmaram, que o cigarro relaxava os pulmões e trazia segurança.

O discurso polêmico ocorre quando Elizabeth (Helena Bonham), a esposa do duque, procura o terapeuta Lionel Logue (Geoffrey Rush) e o tenta convencer de que é ele que deve se dirigir ao duque para o tratamento. Ela também utiliza o discurso autoritário, usando o poder para alegar que o terapeuta será considerado inimigo do duque, caso continue sendo inflexível. Entretanto, Lionel no mesmo nível, usando o discurso autoritário impõe a sua vontade com a frase: “meu jogo, meu território, minhas regras”.

O discurso lúdico aparece quando o duque conta história para suas filhas. Se dá também quando Logue conta histórias para seus filhos representado o personagem. No que diz respeito a outros discursos, apresentados por Afrânio Garcia, foram encontrados no filme alguns deles. O discurso servil aparece sempre que o duque aceita as críticas negativas que seu irmão Edward lhe faz. 

Assim, internaliza-as e como uma verdade absoluta, pratica a autodesvalorização, não acreditando na sua capacidade de ser alguém vencedor. Essa autodesvalorização é vista em algumas frases como “eu sou gago e ninguém pode me curar”, “eu sinto que isso não é pra mim”, “sou gago”, demonstrando em vários momentos, o quanto ele se sente incapaz de ser um rei. Outra confirmação disso é perceptível na resposta que Berthy dá ao terapeuta quando lhe é sugerido ficar no trono em lugar de Edward. Ele alega ser isso traição, mas deixa escapar o sentimento de fracasso: “eu não sou alternativa para o meu irmão”.

O discurso sedutor surge quando o terapeuta usa a emoção do paciente para o fazer perceber que sua gagueira pode ser curada. Logue afirma que ele será um grande homem. Assim, é trabalhando a emoção e a confiança do duque que terapeuta consegue fazer com que acredite na capacidade de encarar o público. O discurso sedutor mais uma vez se faz presente, na cena em que Elizabeth consola Berthy, já rei, com palavras agradáveis a fim de o fazê-lo ir até o terapeuta para tratar-se da gagueira. Ela faz uso do discurso amoroso, com palavras carinhosas para o fazer acreditar que é capaz. O encoraja mostrando que estará do lado dele, finalmente como esposa.

O filme é encerrado com o discurso vitorioso de rei George VI, ratificando a superação da gagueira, causada pelo trauma vivido desde os 4 anos. A última cena mostra um rei acenando para o povo que o aceita como tal. O filme não mostrou as possíveis manchas de George V, pois não se preocupou em embasar suas supostas ligações com o nazismo ou seu apoio em impedir a fuga de judeus da Alemanha para a Palestina, que na época estava sob seu domínio. Segundo Rodrigo Levino, na coluna de cinema do Acervo digital da Veja de 04\02\2011, falou de uma carta da época, escrita ao Ministro das Relações Exteriores, Lord Halifax, contendo citações do rei George V, que mostravam seu posicionamento em relação à guerra.

“Estou contente que medidas nesse sentido estejam sendo tomadas para impedir que pessoas que abandonam seus países entrem em nossos territórios”, disse o rei. “É preciso alertar a Alemanha para verificar melhor a sua imigração.”

As duras críticas ao filme foram no sentido de que as informações foram caladas, a fim de esconder a verdadeira história. Embora acusado de conter discurso de caráter nazista ou antissemita, isso não o impediu de ser contemplado com sete prêmios BAFTA e quatro Oscars, de melhor ator para o protagonista, melhor diretor,  melhor filme e melhor roteiro original.
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Evanilde Miranda





O discurso na música Sem açúcar, de Chico Buarque

Evanilde Miranda e Mahalla Stephanny


Todo dia ele faz diferente, não sei se ele volta da rua
Não sei se me traz um presente, não sei se ele fica na sua
Talvez ele chegue sentido, quem sabe me cobre de beijos
Ou nem me desmancha o vestido, ou nem me adivinha os desejos
Dia ímpar tem chocolate, dia par eu vivo de brisa
Dia útil ele me bate, dia santo ele me alisa
Longe dele eu tremo de amor, na presença dele me calo
Eu de dia sou sua flor, eu de noite sou seu cavalo
A cerveja dele é sagrada, a vontade dele é a mais justa
A minha paixão é piada, sua risada me assusta
Sua boca é um cadeado e meu corpo é uma fogueira
Enquanto ele dorme pesado eu rolo sozinha na esteira
E nem me adivinha os desejos
Eu de noite sou seu cavalo
Eu rolo sozinha na esteira


Música de 1975 composição de Chico Buarque LP: Chico Buarque e Maria Bethânia



Em oscilações de lá menor e lá maior vem retratar o cotidiano de um casal. O eu lírico feminino demonstra um sentimento de insatisfação diante de sua relação. Isto é percebido na dramaticidade causada pela potência do timbre grave do contralto de Maria Bethania.

As metáforas são percebidas tanto na questão musical quanto no aspecto semântico, pois a letra traz uma narrativa sob a visão de uma mulher insatisfeita, é o discurso dela a respeito dele que é apresentado. A forma como a composição foi harmonizada, com notas prolongadas (ligaduras) lembram o próprio ato de chorar, sugerindo que ela conta sua história, em prantos, desabafa seu sofrimento. Parece cantar em notas cortadas que dão ideia de corte, de algo abrupto, de desequilíbrio, tal qual sua desarmônica relação.

Nesse sentido, portanto, entende-se que a melodia dialoga com o texto musical e que o sentido da canção é apreendido a partir dessa junção. Nela é fortemente enfatizada a tensão do enunciador, seu estado de espírito, do impacto sentido enquanto o conteúdo é narrado. O próprio título vem sugerir que as coisas não estão bem, pois o termo sem açúcar, sugere algo sem doçura, sem sabor.

Nos três primeiros versos o eu poético inicia falando da figura masculina, que “todo dia ele faz diferente” e que ela já não sabe ao certo quais suas atitudes. Isto traz o sentido de que ambos não têm a cumplicidade de um casal, que eles não se conhecem mais, que o relacionamento tornou-se algo distante, pois ela (o sujeito poético) não tem noção de quando ele fica magoado nem sabe quando ele chegará enchendo-a de beijos.

No quarto verso ela acrescenta que não sabe se ele lhe “desmancha o vestido, ou nem me adivinha os desejos.” Aqui a questão sexual é percebida, lembrando as mulheres de alguma época em que esperavam o marido “a procurarem” para o ato sexual. Elas eram totalmente dependentes da boa vontade dos maridos para se sentirem satisfazer as necessidades sexuais.

Em 1975, época em que a música foi composta, foi decretado o dia Internacional da Mulher. A década de 70 foi marcado pelo surgimento de muitos movimentos feministas e mulheres com diferentes orientações sexual, além de muitos debates sobre o novo comportamento do gênero feminino. Entretanto, nem todas agiam assim, muitas mulheres ainda eram escravas sexuais dos maridos. É só lembrar da novela Gabriela (1975), adaptação do romance de Jorge Amado, que mostra o quanto a sociedade possuía um discurso machista e opressor da figura feminina.

Na canção Sem açúcar, vê-se uma mulher semelhante, que “em dia útil” apanha, e só “em dia santo” ele a alisa. Os dias úteis são 5, semanas, com ideia de constâncias, de frequência, e estes são os dias nos quais ela apanha. Carinho ela recebe de vez em quando, em esporádicos feriados.

Vê-se a figura da mulher “Amélia”, mais que submissa, oprimida pela “virilidade”, pelo machismo do marido, que diante dele “se cala”, estremece de amor e cede aos seus caprichos. Que de dia é uma flor, é frágil, delicada, mas de noite é um cavalo, um animal que seu “dono” faz uso levando em consideração apenas seus desejos.

Ele é um homem da farra, uma vez que ela diz que a cerveja dele é sagrada.  Isto sugere que ela não pode faltar, que suas vontades são inquestionáveis, pois ela diz “sua vontade é sempre justa”. Ela é uma mulher que ama e não é compreendida nem correspondida, visto que sua paixão é para ele uma piada e sua risada a assusta. Sua risada, alegria não é algo comum, ele é apresentado como um homem grosseiro, que não demonstra carinho nem amor pela esposa, que não estabelece diálogo com ela, que “sua boca é um cadeado”.

Desse modo, é possível perceber que ele não tem cumplicidade nem intimidade com ela, pois ele sente o próprio corpo como“uma fogueira”. Essa expressão, metaforicamemente, alude ao desejo de satisfação sexual, e também à falta de carinho, de amor. Aí está implícito o discurso da mulher vitimizada, sem voz, sem direito a reclamar. 

Nisto se nota a relação com a ideia de Foucault sobre o discurso, sobretudo no que diz respeito à interdição, pois a produção do discurso é sempre controlada, selecionada, organizada, redistribuída por certo número de procedimento. Ele afirma, “sabe-se bem que não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer circunstância” (FOUCAULT,1999, p. 9), sendo nesse sentido, um discurso interdito.   

A mulher como aquela q não tem direito de falar, de questionar, é percebida no próprio discurso do eu poético, pois é por meio de interdições que ela expressa sua dor. Ela não diz: "preciso de sexo", ela diz: enquanto ele dorme, eu rolo na esteira". Enquanto ele dorme tranquilo, ela rola sozinha na esteira e ele não percebe, “não advinha seus desejos”, deia que é confirmada quando ela retoma, “eu de noite sou seu cavalo, e rolo sozinha na esteira”.

Ela enfatiza sua angústia e não realização enquanto mulher e esposa, por meio da sensação de ser usada como um animal. E não com um animal de estimação que ela se compara, é um cavalo, aquele que serve para um fim, para o trabalho, e assim como ele, é vista como o que não tem o direito de ser respeitado em suas necessidades e vontades.

O modo como a música é finalizada, como se a gravação não tivesse sido toda gravada, sugere a falta de harmonia entre esse casal, assim como as oscilações das notas em lá menor e maior também vem enfatizar o descompasso em que vivem.

A música como arte, apresenta a informação estética, de modo que se percebe um diálogo com a contemporaneidade, pois não a mensagem da melodia não envelhece, uma vez que a harmonia da letra da música com a forma que é cantada (expressão dos sentimentos na voz do enunciador) e da própria técnica musical, podem ser sentidos por todo aquele que se entrega a desfrutar aos prazeres da arte. 

Pois de acordo com Aranha & Martins (2009) na experiência estética é estabelecido um acordo entre a natureza e o sujeito em uma espécie de comunhão na qual o sentimento é a via de acesso. O objeto estético é, nesse aspecto, o lugar do sensível, pois é por ele que é dado todo sentido. 

É possível notar o sujeito histórico de modo que a mulher como minoria,  sob o peso do discurso machista, é dominada e agredida pelo homem. Desse modo, possibilita que o ouvinte, por meio da harmonia da mensagem apresentada e da forma como é expressada, desperte sensações que o familiariza ao contexto, não obstante as épocas sejam diferentes. 

Isto porque a  arte como forma de pensamento, “é uma forma privilegiada de entendimento intuitivo de mundo, tanto para o artista que cria obras concretas e singulares, quanto para o apreciador que se entrega a elas para penetrar-lhe o sentido” (ARANHA & MARTINS, 2009. p.418). Nessa perspectiva, percebe-se que o entendimento de mundo não acontece de um modo fixo, apenas a partir de conceitos organizados de forma lógica, mas também por meio da intuição.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARANHA, Maria Lúcia. MARTINS, Maria Helena. Filosofando: Introdução à filosofia. Vol. Único; moderna, 2009.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Aula inaugural no Collége de France, pronunciada em 2 de setembro de 1970. Tradução: Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Edições Loyola, 1999.










Resenha do texto O discurso não é camada, de Sírio Possenti

Sírio Possenti inicia o texto apontando que uma das razões de o tema “gramática e discurso” ser difícil, é a existência de suas muitas acepções pouco semelhantes entre si. Acrescenta que é necessário ficar claro no texto sobre o que se fala. A partir da Análise do Discurso Francesa, critica formulações que deixam a desejar quanto ao estruturalismo e à mesmice do sujeito assujeitado. Usando a resenha de um argumento de Paul Henry, o autor salienta a necessidade de clareza de sentido do texto.

“[...] a liberdade de combinar fonemas em palavras é circunscrita, é limitada à situação marginal da criação de palavras”. Citando Jakobson, Possenti busca asseverar seu ponto de vista em relação ao tema discurso e gramática, percebendo que “na formação das frases a partir de palavras, a coerção que o locutor sofre é menor”. Desse modo, nega que o discurso seja uma camada, visto que este não consiste apenas em explicar características, mas também sua interpretação.

O exemplo mostra os aspectos do discurso e da gramática, imprimindo a relação de dependência ou complementariedade entre ambos. Isto porque o combinar fonemas é limitado à própria regra gramatical, todavia, na formação de frases o locutor tem liberdade de escolher como formá-las. E esse liberdade implica uma intencionalidade do discurso.

O autor estabelece a relação entre língua e discurso a partir da AD, clarificando o sentido de discurso como sendo não apenas complemento da língua, nem resultado do simples uso desta. Nesse sentido, o discurso não está em oposição à gramática nem está como seu mero complemento. O discurso é para Possenti, um tipo, um efeito de sentido que se materializa na língua, por meio de trabalho com e sobre recursos de expressão que produz efeitos de sentido. O autor ressalta, ainda, que nem sempre esses efeitos são percebidos pelo locutor, ouvinte, leitor.

Para reforçar sua visão, menciona a análise de Kress (1985), em que é abordado o discurso em uma reportagem de TV. O locutor apresenta a reportagem permeada de adjetivação, imprimindo um carregado discurso negativo em relação aos manifestantes do antiapartheid.

O primeiro repórter escolhe palavras carregadas de intencionalidade, que mostram a polícia como a protetora, como aquela que defende a sociedade da violenta manifestação que findou em muitos feridos e 13 presos. O segundo repórter afirma que os grupos contrários à excursão marcam o dia como a vergonha de Nova Zelândia.

Os três exemplos exibem a relação entre gramática e discursividade, pois “o discurso que se veicula neste texto se veicula exatamente pela seleção de determinados recursos da sintaxe”. A posição ideológica pode se dar de outras formas, por outra estrutura sintática. Sendo, portanto, cada caso um caso, é o modo como o discurso é veiculado que produz sentido e\ou sua interpretação.

Evanilde Miranda



Resenha do livro "Ponto eletrônico", de Flávio Prado

PRADO, Flávio. Ponto eletrônico: Dicas para fazer telejornalismo com qualidade. São Paulo, Editora Lumiar, 1996.

Flavio Prado é jornalista desde 1974, tendo iniciado a carreira na TV Gazeta, com passagens pelas TVs Record, Bandeirantes e Cultura. Está de volta à TV Gazeta desde 2003. É apresentador do programa Mesa Redonda e Comentarista do programa Gazeta Esportiva e da Rádio Jovem Pan.

O livro “Ponto Eletrônico”, publicado pela editora Limiar, é direcionado para estudantes, recém-formados e jornalistas em início em TV. O livro traz, numa linguagem de fácil compreensão, conhecimentos específicos das práticas jornalísticas com dicas voltadas para o telejornalismo de qualidade.

Na apresentação Armando Nogueira relembra a situação do jornalista de televisão, de outras épocas, dizendo que o mesmo era considerado um tipo marginal do jornalismo, isto porque “trocar a redação do jornal pelos bastidores da TV, estava simplesmente, mudando de ramo”. Mas nos dias de hoje, o telejornalismo é um dos campos mais disputados co mercado da comunicação, pois quem sai da faculdade pode decidir sem constrangimento, se vai ser repórter de jornal, rádio ou televisão.

Flávio Prado inicia com uma breve contextualizando da história da TV, apresentando as primeiras experiências, desde a do Barão de Berzeleus, na Suécia em 1817, até a novidade chegar ao Brasil, em 1817. Prado afirma menciona a diferença de perfil das programações e produções, afirmando que “enquanto na Europa havia subsídios governamentais e utilizava-se a televisão com finalidade educativa, nos EUA ela já nasceu como negócio”. E esta foi uma das consequências de os americanos passassem a exportar técnicas e equipamentos quem se interessasse pelo assunto.

É relevante ressaltar que o Brasil foi um dos primeiros países a apostar nessa inovação. O empresário Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira Melo, era dono dos Diários Associados, cadeia nacional de jornais e emissoras de rádio. Em 1949 resolveu ter uma TV, pois via-a como mais uma fonte lucro e de ampliação de seu poder. A primeira transmissão foi restrita a São Paulo e contou com o auxilio do chamado “jeitinho brasileiro”, com “o contrabando de 200 aparelhos, poucos dias antes”. Essa primeira experiência deixou claro que os brasileiros possuíam talento para lidar com a novidade.

A partir de Chateaubriand, outros empresários seguiram a ideia novas emissoras foram surgindo. Em 1952 Vitor Costa abre a TV Paulista, canal 5. Em 1953 Paulo Machado de Carvalho, abre a TV Record de São Paulo e dois anos depois a Record do Rio de Janeiro, que em 1953 saiu do eixo Rio-São Paulo com a TV Itacolomy, de Belo Horizonte. A TV Excelsior surge no mesmo ano.

Depois do golpe de 1964 surgiu a TV Bandeirantes/SP, em 1967 e em 1965. No Rio nasce a TV Globo, que José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, na administração de marketing e na produção, e Armando Nogueira no setor jornalístico. Em 1967 a Globo comprou a TV Paulista, e emissoras em todas as regiões.

Criou uma linguagem única, o padrão global que viria com tecnologia de ponta para a época, e assim revolucionou os conceitos existentes. “Tudo isso só foi possível graças a um acordo com a empresa norte-americana Time-Life, que facilitou o investimento em novos equipamentos importados dos Estados Unidos”. A partir dos anos 70, os telejornais da Globo tornaram-se modelo para outras emissoras.

Sobre a preparação e retaguarda do telejornalismo, Prado diz que “o responsável pelo setor de economia expõe o que será vinculado” a partir do tamanho do jornal e das condições da emissora. Apresenta e explica alguns termos no inicio dessa preparação, como o pré-espelho, espelho, pauta e rádio-escuta.

O primeiro é o esboço de como será o programa. Depois o pauteiro faz a checagem dos fatos e das condições dos equipamentos. O espelho é o projeto do que irá ao ar. Nele se define os assuntos prioritários, a ordem das matérias, o tempo, onde encaixar os comerciais e até a qual matéria cada profissional se dedicará.

A pauta é a orientação transmitida aos repórteres pelo profissional responsável por pensar de que forma a matéria será abordada no programa. Contém objetivo, enfoque que deve ser dado, informações sobre o assunto e o encaminhamento a ser seguido pela equipe. São chamados rádio-escuta, os que passam relatórios à chefia de reportagem e aos editores-chefes, enfatizando sempre os pontos mais importantes.

Sobre a reportagem e a entrevista, o autor diz que o repórter é a célula básica de todos os veículos de comunicação, pois é ele que testemunha os fatos e os conta para os telespectadores, por isso é necessário que ele tenha muitos cuidados, uma vez que um erro de interpretação pode gerar transtornos irreversíveis.

E ai entra a necessidade das técnicas de reportagem que tem como intuito, informar de forma correta e rápida. Prado vai explicando passo-a-passo cada termo técnico, como OFF, passagem, encerramento, entrevista, entrevista coletiva, posição, cena de corte, contraplano, notas cobertas, material de arquivo, imagens internacionais, release eletrônico, equipe de ENG, e lapadas.

Sobre a edição Flávio explica que esse é o trabalho de transformar o material bruto capitado pelo repórter e pela equipe de ENG, em produto final que irá ao ar. Os responsáveis são os editores de texto, acompanhados pelos editores de imagens ou operadores de VT.

Ele fala dos equipamentos de edição, do ambiente técnico, dos cuidados a serem tomados. Fala também do processo de ducupagem, montagem, sonora, cobertura da matéria, alternativa de cena de corte, som ambiente, sobe-som e musicas, da correção dos erros e da responsabilidade do editor.

Na parte da edição e pós-produção digital o autor contextualiza a revolução dos processos de edição e diz que nos EUA, o Federal Comunications Comissin estabeleceu o prazo até 2006 para a implantação definitiva do DTV e que no Brasil, o SBT e a Rede Globo já estão com o sistema misto, analógico e digital. As televisões digitais tendem a mudar completamente a relação do telespectador com o veículo, em razão de uma maior interação entre eles.

Sobre o texto de televisão é enfatizada a necessidade de clareza, num texto ritmado, com frases curtas e fortes. São elencados vários exemplos de expressões a serem evitadas, além de dicas de cuidados com adjetivos, suíte, artigos, citações etc. Prado explica como preencher as laudas enumerando as técnicas de preenchimento, mostrando a imagem de laudas para uma melhor compreensão.

Ele aponta ainda os complementos relativos à edição das matérias e necessários para que o telejornal vá ao ar, como chamadas, escalada, teaser, passagem de bloco e encerramento. Prado retrata o dia-a-dia do jornalismo esportivo, dizendo que “o cronista esportivo não pode conhecer apenas o assunto de sua especialidade”, pois estar bem informado é sua obrigação. Aponta os cuidados na transmissões  esportivas e explica sobre as grandes coberturas.

Conclui com os cuidados profissionais, afirmando que “o bom profissional precisa toma vários cuidados no seu cotidiano e mesmo ainda no dia da transmissão”. O autor dá dicas para os narradores, para os repórteres, e para os comentaristas e acrescenta que mais importante do que todas as dicas dadas, é a ética profissional, que deve existir não apenas em representações momentâneas e que nada deve ser usado em proveito próprio.

O livro é assume grande importância para os estudantes, os recém-formados e os jornalistas principiantes, pois contem dicas das práticas a serem seguidas no mercado, a fim dar respaldo técnico para a prática do telejornalismo com qualidade. A linguagem utilizada é de fácil compreensão, o que torna a leitura e agradável. As imagens junto ao texto, auxiliam o entendimento sobre os termos técnicos sobre como executa-los. 

Evanilde Miranda


Resenha do texto Ética, política e psicanálise, de Muniz Sodré

SODRÉ, Muniz. Ética, política e psicanálise. In: Ética na comunicação. 4ª edição. Mauad Editora: 2008.
           
            Muniz Sodré de Araújo Cabral é professor titular na Escola de Comunicação da UFRJ, jornalista e escritor de sucesso. Domina várias áreas das Ciências Sociais e Humanas, tendo sido diretor da ECO e coordenador de pós-graduação, responsável pela implantação do curso de Doutorado na ECO-UFRJ.tem publicados cerca de duas dezenas de livros didáticos, acadêmicos e também de literatura e ficção, além de ensaios e artigos, no Brasil e no exterior. 

            O livro “Ética na comunidade”, publicado pela Mauad Editora, é constituído de textos com diferentes linhas de pensamentos, e de diversos autores, bem como Muniz Sodré, com o texto “Ética, política e psicanálise”, onde inicia  retratando o sentido de ética, como o ato de morar, de se instalar num espaço, e “ethos”, no fragmento de Heráclito, como sendo costume.

Na tradução do fragmento de Heráclito, “o caráter do homem é o seu deus ou seu demônio” (p.57). Para J.P.Vernant, “Deus é a morada do homem” (idem), assim com para Heidegger, “O homem mora nas imediações dos deuses” (idem).  Desse modo, relaciona-se com uma ordem que o transcende, que o impede de autorreferenciar-se como ente no mundo. É desse “ethos” que vem o termo “ethiké” (ética), designar o conjunto dos “nomoi” (regras e valores que dão forma à territorialização do indivíduo humano, que organizam, em vários níveis a morada do grupo em um determinado lugar, intentando determina-lhe os objetos bons ou supremos, o Bem.

Para Sodré, ética é diferente de moral. Moral também é um conjunto de normas relativas à formação do caráter e da conduta do individuo, porém, diferente da ética, a moral não pretende tornar-se uma abordagem teórica, tendo como objeto, os juízos de valor sobre as ações humanas como boas ou más. Os pós-Kantianos alemães colocam a Ética acima da moral, pois a moral visa à personalidade individual, enquanto a Ética pressupõe uma “sociedade de seres morais” (p.58). Toda educação implica uma ética, quando se destina a organizar objetos consensuais das pulsões individuais e coletivas.

No que diz respeito à política, refere-se ao governo dos homens pelo Estado e ao controle dos meios para se obter um bem comum, diferente da Ética, que está relacionada ao lugar ontológico do homem. Política, embora se defina pela ideia de “morar”, como a ética, difere da mesma em razão de pressupor à autoridade, no sentido de ampliação da ordem criadora, e política pressupor poder e contradição. Na Ética, no entanto, não há contradição, há conflitos.

A força criadora da Psicanálise tem muito a ver com a Ética, segundo Sodré. Isso se dá na medida em que investiga o sintoma do sujeito em relação às regras e valores morais do grupo. “A disciplina internalizada é propriamente a moral, isto é, a ética reduzida ao costume e adaptada à autorregulação da consciência pelo sujeito da cidadania” (p.61).

Sodré conclui relacionando ética, política e psicanálise, afirmando que a Ética procede da política como instância reguladora da crise do grupo, e que na Modernidade ela só aparece dentro do circulo discursivo da política.  Se a Ética grega era uma “episteme”, a Ética psicanalítica, no interior de uma relação clínica é basicamente “techné” (conhecimento, arte, caminho).


Esta obra proporciona uma discussão sobre os vários aspectos da ética. Por trazer contribuições para o entendimento da ética em várias de pesquisa, como política e psicanálise. Desse modo, não obstante o texto trazer uma leitura com termos mais teóricos, é de grande relevância, pois contribui positivamente tanto para ampliação dos conhecimentos sobre a ética, quanto para o desenvolvimento do vocabulário e do intelectual. 

Análise de "Toda nudez será castigada", de Nelson Rodrigues

SACRIFÍCIO, LOUCURA E TRAGÉDIA

Toda nudez será castigada, de Nelson Rodrigues, inicia em média res, com flash backs nos quais aos poucos a história é compreendida, assim como o sentido do título. A nudez no seu amplo sentido, com a presença do desejo dando lugar à tragédia, traz à tona a reflexão sobre a possibilidade de o desejo se irmanar com a morte. Um dos elementos da tragédia trabalhado pelo autor é a Moira, o destino. Nelson apresenta a personagem conhecedora de seu destino caminhando conformadamente para ele, diferente das histórias trágicas da mitologia grega.

Ao contrário de Aquiles, que ao saber que trairia o seu pai com sua própria mãe, resolve fugir para evitar o pior, Geni espera complacente pelo cumprimento do seu funesto destino. Repetidas vezes afirma, primeiro para Patrício “O melhor você não sabe. Tenho uma cisma que vou morrer de câncer no seio” pág. 82, depois para Herculano “Eu cismo desde garotinha, que também vou morrer de câncer no seio. É um palpite, sei lá” pág. 86.

É possível encontrar muitos exemplos como o de Geni, que esperaram de modo resignado, um futuro determinado, inclusive nos textos bíblicos. No livro de Mateus, quando um discípulo tenta impedir que Jesus seja preso, o próprio Cristo, ao repreendê-lo, declara “Como, pois, se cumpriria as Escrituras...?” Mateus 26.54. Mais adiante, Mateus confirma as palavras do seu mestre “Mas tudo isso aconteceu para que se cumpram as Escrituras dos profetas...” Mateus 4.58. José do Egito também entende que seu destino já estava traçado exatamente como aconteceu. “Assim, não foste vós que me enviaste para cá, senão Deus, que me tem posto por pai de Faraó...” Gênesis 45.8.

Enquanto nas tragédias gregas, aquele que conhece o seu futuro sente-se perturbado e luta para que este não aconteça, Geni, aceita obsessivamente as palavras da mãe, como uma praga inevitável: “Quando eu tinha 12 anos...minha mãe me mandou comprar não sei o quê...Eu demorei. E quando cheguei, minha mãe gritou: - Tu vai morrer de câncer no seio!” pág. 88. Geni acredita que isso seja a razão de ter caído na zona, que as palavras da mãe influenciaram em toda sua vida sem infância. Desse modo, a Hybris não está presente nas ações da protagonista. Porém, esta, pode ser percebida em Herculano, que afirma que prostituta não é mulher, e é justamente por uma que se apaixona e ignorando a opinião social desfruta de seu amor.
“Se alguém te disse que eu ia casar com essa mulher, é mentira, calúnia! Jamais me passou pela cabeça essa ideia. Nem é minha amante...uma prostituta não é amante, é uma mulher que todos usam -- mas pagando!” pág.103.

Depois bastou Serginho pedir para que o pai casasse, para que este assumisse o que sentia por Geni. “...O senhor não sabe o caráter de Geni! E a bondade e delicadeza! Até o Patrício mudou tanto!”. pág.107.
 Percebemos a hybris também em Serginho, que evita o sexo por considerá-o impuro e incorreto, no entanto, possui tendências homossexuais. E mesmo conhecendo o sexo de forma agressiva, por um estupro, resolve desfrutá-lo com sua própria madrasta e ainda se sente traído pelo pai. “Sabe que eu fico besta contigo? Parece mentira, mas você me trai... Você não me trai com meu pai?” pág.108. Apresenta, desse modo, oscilação entre o conservadorismo das tias e o liberalismo do tio Patrício.

O personagem Patrício, semelhante a Iago, de Otelo, é o mentor de todos os acontecimentos, causador de todas as intrigas, pois faz a todos de fantoches, submissos à sua vontade. Representa o interesse individual, egoísta em detrimento do coletivo. “Então te levo ao Serginho. Ele só faz o que eu quero. O garoto está maluco. Mas é uma loucura que aderna para um lado ou para outro, segundo a minha vontade.” pág. 104. Assim, assume o papel de condutor dos personagens ao caminho do cumprimento de seus destinos, determinado por ele próprio, com o poder emblemático dos deuses.

A Catarse também é percebida em vários momentos da peça. Quando Geni resolve viver para Herculano m troca de comida, depois que Serginho é preso e estuprado na prisão.
 “(chorando) – Vou ser tua criada, criada do teu filho! Vou lavar chão, mas não saio. Herculano! Não saio daqui enquanto, até o fim da minha vida... - não quero nada senão um prato de comida e um canto pra dormir”. pág.102. Outro momento se constitui quando Geni tira a própria vida, depois de comunicar ao esposo, por meio de uma gravação. "Herculano, quem te fala é uma morta. Eu morri. Me matei...Você pensa que sabe muito. Sabe tão pouco!". pág.80. 

Nelson Rodrigues, constrói Toda Nudez os revisitando os elementos da tragédia, todavia, com um outro olhar, com um olhar mais relista, escancarando os conflitos sociais de preconceitos, adultério, tendências ao homossexualismo,  incesto, desejo de homicídio, camuflados num conservadorismo hipócrita. As tias de Herculano, antes acusadoras de Geni, depois de verem o sobrinho contrair matrimônio com a prostituta, casando, seguindo as regras da sociedade, passam a defender com a finco, a mais nova integrante da família e negam o passado de Geni.

“Tia nº 1(ameaçadora) – O que é que você ia dizer de Geni?
Tia nº 3 -  Geni agora é da família.
Tia nº 2 – A gente olha para Geni e não diz que ela já foi da zona.
Tia nº 1 – Você tá louca?...Geni nunca foi da zona. Honestíssima. Você é que pôs isso na cabeça, porque está fraca da memória. Arteriosclerose!”. pág. 108.

O autor roupe com modo fixo e determinado das tragédias gregas, mostrando em sua obra, que o destino, pode ser mudado a partir da atitude dos personagens, uma vez que Geni, decide seu fim cometendo suicídio, embora tivesse a dolorosa obsessão de morrer com uma ferida no seio. 

Assim, desconstrói a ideia de que os deuses é quem decidem o destino, mostrando que na verdade, cabe a cada um, decidir seu fim, construir sua própria história. Em toda nudez será castigada, encontramos as contradições vividas por personagem Herculano, que tentam sacrificar a felicidade por sentirem sucumbidos pelo preconceito de uma sociedade igualmente falha. Também enxergamos Geni, beirando à loucura, numa obsessão por um funesto, de uma morte de câncer no seio, rompida por uma tragédia: seu suicídio.

Evanilde Miranda

Análise do conto O jantar, de Clarice Lispector

LISPECTOR, Clarice, O Jantar, Editora Rocco, 1998

O BEM E O MAL

Laços de família é o primeiro livro de contos de Clarice Lispector, no qual oito, dos treze, retratam a condição feminina na família, narrados em 3ª pessoa. O Jantar é o único em 1ª pessoa, e tem como narrador um personagem masculino que observa o indelicado ato de comer de um homem, na outra mesa do restaurante.

O conto não revela o nome do homem a jantar. Assim, possibilita uma aproximação da história sugerindo que o homem pode ser qualquer um que a ler. É descrito não apenas a maneira como o homem se comporta durante a refeição, mas o ser enquanto humano, suas inquietações, seu modo de ser, o seu interior. Com uma linguagem simples Clarice Lispector consegue trabalhar de forma empática, a tão antiga dificuldade de compreender o outro, a vivência em sociedade, levando o leitor a também sentir os conflitos sentidos pelo narrador estabelecendo a predominância do tempo psicológico na obra, revelando os sentimentos dos personagens, não obstante se perceba a existência de um tempo cronológico.

“Desta vez, quando o tira sem pressa, as pupilas estão extremamente doces e cansadas, e antes dele enxugar-se — eu vi. Vi a lágrima. Inclino-me sobre a carne, perdido. Quando finalmente consigo encará-lo do fundo de meu rosto pálido, vejo que também ele se inclinou com os cotovelos apoiados sobre a mesa, a cabeça entre as mãos. E exatamente ele não suportava mais”. pág. 53.

De acordo com a psicologia, o ato de comer é mais que tentativa de satisfazer a necessidade biológica, comer é um ato público. Isto porque comer caracteriza-se como um dos primeiros tipos de comunicação humana de todo indivíduo, uma vez que os pais sondam o estado físico e até emocional dos bebês através desse ato, estabelecendo assim, um diálogo não-verbal com os  filhos. Acrescente a isso, traz diversos significados simbólicos sobre o relacionamento interpessoal, demonstrando muitas questões psicológicas como apelo social em confraternizações entre amigos, carência, hostilidade, medo de rejeição, e até desejo de destruir o outro.
“A comida devia ter parado pouco abaixo da garganta sob a dureza da emoção, pois quando ele pôde continuar fez um gesto terrível de esforço para engolir e passou um guardanapo pela testa. Eu não podia mais, a carne no meu prato era crua, eu é que não podia mais porém ele – ele comia”. pág. 53.

O Jantar dá ênfase a esse ato com descrições que desenham não apenas o físico de um homem que come, como também sugere uma personalidade bruta, indelicada e faminta, que não se resume somente àquele momento da refeição, mas traduz, de modo geral, os lados do homem, o ser humanizado, enquanto gente, e o grosseiro, bruto, animalizado. Desse modo, Clarice Lispector, usa o ato de comer para retratar questões internas, conflitos da relação em sociedade, transcendendo o ato de comer para sobreviver, ao ato de sobreviver às próprias crises existenciais. Em o jantar, o homem é animalizado quando mostrado como alguém desesperado para comer, de cotovelos sobre a mesa, lábios sujos, semelhante a um animal, que come sem regras de etiqueta, regido pelo instinto de devorar para saciar a fome.

“Porque agora desperto, virava subitamente a carne de um lado e de outro, examinava-a com veemência, a ponta da língua aparecendo — apalpava o bife com as costas do garfo, quase o cheirava, mexendo a boca de antemão”. pág. 52. O narrador-observador o ver com hostilidade, metaforizando um bicho a devorar a caça, guiado somente pelo instinto animal. “Então, já sem fome, o grande cavalo apoia a cabeça na mão”. pág.54.

A simbologia do ato de comer retratando o bem e o mal, o bom e ruim, percorre até mesmo o âmbito religioso. Nos textos bíblicos é possível encontrar muitos exemplos, como a história de Adão, no Jardim do Éder, nos quais a maldade e a morte do homem vieram em consequência do comer (o fruto proibido). No entanto, mais tarde, o mesmo ato assume a possibilidade de reconciliação do homem com seu criador, quando Deus oferece o único filho para a salvação da humanidade. “Porque, assim como a morte veio por um só homem, também a ressurreição veio por um homem”. 1º Corintios 15.21, ARC. E é sob a forma emblemática da comida, que com a celebração da Ceia para os cristãos, relembram a salvação ao comerem o pão e beberem o vinho. “ ...o Senhor Jesus, na noite em que foi traído, tomou o pão; e, havendo dado graças, o partiu e disse: Isto é o meu corpo que é partido por vós; fazei isto em memória de mim”. 1º Corintios 11.24, ARA.

Em outros momentos, ainda nos textos bíblicos encontram-se diversos rituais de celebração da cultura judaica, em que a comida faz referência ao bem e ao mal, com mel e fel sendo usados para transmitir esse paradoxo entre morte e vida. Ademais, determinados tipos de comida representarem mácula, impureza e remeterem ao pecado, como é o caso da carne crua. “Não comereis carne crua nem cozida na água, mas assada em fogo: inteiro com cabeça, pernas e vísceras”. Bíblia Católica, Êxodo.12.9.

No conto O Jantar o narrador observando o cardápio do homem, afirma conter carne crua, e acrescenta que isto não impede o velho de continuar comendo. Duas coisas podem ser observadas nesse momento. Primeiro, o sentimento de quem contempla a cena. Segundo a representação que a mesma possui. A carne crua causa náusea no narrador porque transmitiu para ele o mal, a insensibilidade, a ausência do sentimento humano que esperava ver no outro, e não ver.

Procuro aproveitar este momento, em que ele não possui mais o próprio rosto, para ver afinal. Mas é inútil. A grande aparência que vejo é desconhecida, majestosa, cruel e cega. O que eu quero olhar diretamente, pela força extraordinária do ancião, não existe neste instante”. pág. 54.

O homem representa a sociedade, no caso, a burguesa, como suas características descritas comprovam. Certamente ocupara-se até agora em grandes negócios... Num dedo o anel de sua força”. pág. 52. O narrador representa o olho social a analisar, comparar, criticar. Por vezes, faz questão de destacar as diferenças entre o homem e a mulher magra. Ele corpulento, velho, bruto, faminto, embora ostentasse poder. “A voz que esperava dele: voz sem réplicas possíveis pela qual eu via que jamais se poderia fazer alguma coisa por ele. Senão obedecê-lo”. pág. 53. Ela magra, elegante, sorridente, cada vez mais bela. Há dois momentos a se notar enquanto o “corpulento” come. Em um, ele come em agonia, desesperado para saciar a fome que o assalta. O que pode constituir sua personalidade autoritária, “sem réplicas”, esperando ser sempre obedecido. O prazer em suprir a necessidade biológica pode remeter à (in)satisfação da sua posição social. Em outro, já na sobremesa, com traços caídos e dementes, parece introspectivo. O termo “comedor de criança” pode remeter à morte desse lado infantil, inocente, alegre que ele tentar resgatar.

“Os traços agora caídos e dementes, ele balançava a cabeça de um lado para outro, de um lado para outro sem se conter mais, com a boca apertada, os olhos cerrados, embalando-se — o patriarca estava chorando por dentro” pág. 54.

Narrando, se auto-avaliar enquanto julga o protagonista. O vê em plena glória a mastigar de boca aberta, olha o próprio prato e desiste de cortar a carne quando o velho furta-lhe mais uma vez a atenção, demonstrando não mais suportar. Em contrapartida ele próprio não consegue comer, transfere para a comida toda a repulsa que o outro lhe causa. Pega então no copo de vinho e bebe de olhos fechados, em rumorosa ressurreição. Meus olhos ardem e a claridade é alta, persistente. Estou tomado pelo êxtase arfante da náusea.”. pág. 53.

Sua observação ganha profundidade, pois faz uma reflexão sobre si mesmo ao longo da obra, a partir de um ato aparentemente simples como o de comer. Seu julgamento imprime um sentimento de superioridade. Ele demonstra se achar melhor que o homem.“Quando me traíram ou assassinaram, quando alguém foi embora para sempre, ou perdi o que de melhor me restava, ou quando soube que vou morrer — eu não como”. pág. 55. Encanto o velho comia sem perceber um mundo à sua volta, o outro tinha a sensibilidade de perder o apetite por ver a indelicadeza de um velho ao fazer a refeição. “Mas eu sou um homem ainda... Empurro o prato, rejeito a carne e seu sangue.” pág. 55. 

Desse modo mostra que ainda se sente humano, pois continua tendo sentimentos mesmo enquanto come, diferente do outro que ao terminar “Sua cara se esvazia de expressão”pág. 54. Dessa maneira, estabelecemos comunicação com os outros, uma vez que até comendo denunciamos muito de nós, nosso interior, qualidades e defeitos.

“Batia um lábio no outro, estalava a língua com desgosto como se o que era bom fosse intolerável... Com a mão pesada e cabeluda, onde na palma as linhas eram cravadas com tal fatalidade, faz um gesto de pensamento. Diz com a mímica o mais que pode, e eu, eu não compreendo. E como se não suportasse mais — larga o garfo no prato”. pág. 54.

Há quem diga que “somos o que vestimos” pode-se parafrasear afirmando que “somos o que comemos” pois nesse momento, imprimimos nosso lado mais obscuro, a bichificação do homem , revelando o interior, no qual, abriga a maldade humana tão crua quanto a crua carne servida em O Jantar. “A grande aparência que vejo é desconhecida, majestosa, cruel e cega”. pág. 55.  Dessa forma, a comida é metaforicamente utilizada para destacar o aspecto interior do ser humano.

Evanilde Miranda